Matutando em tragédias...

Com displicência e fastio (com pouca humildade e muita falta de ética política) disse ontem, na Assembleia da República, o primeiro ministro de Portugal: “Não vou fazer jogos de palavras. Se quer ouvir-me pedir desculpa, eu peço desculpa”... E eu, sinto-me agora, enquanto recordo a frase e enquanto escrevo, sinto-me a escorregar pelo declive de filosofias fáceis, mas prefiro que assim seja, não quero estatelar-me em tom de gravidade pretensiosa. Adiante. Aquelas palavras, tiradas a ferros, foram ditas a propósito das tragédias resultantes dos incêndios florestais que assolaram Portugal (nos últimos quatro meses), que nos assustaram a todos e que mataram mais de cem: há por aí, à vista de todos, ruínas do que aconteceu e do que ainda pior poderia ter sido. A verdade (nua, crua e dura) é que todos sabemos ter a nossa vida presa por arames, mas os dias passam, as tragédias e as catástrofes acontecem; e, mesmo sendo assim, lá continuamos a encaixilhar a ideia de que aparamos migalhas de manjares da eternidade, projectamos quer o dia seguinte quer o futuro que ainda vem longe. Um dia, porém, devido à incúria de uns e à negligência de outros, o tempo desaba e a desgraça acontece: foi o que aconteceu. Voltando àquela afirmação, ao dito displicente pedido de desculpas (se é que o é): o normal seria que após as duas últimas terríveis tragédias, mal refeitos do pavor, envergonhados pelos mal atamancados avisos, dementes e desnaturados e ensandecidos, do “salve-se quem puder”, ainda encharcados com as soluções pívias improvisadas e fartos de teorias da conspiração sem sentido, todos devêssemos (imperativamente) pôr os olhos uns nos outros e encontrarmo-nos iguais, um pouco irmãos e amigos e sinceros. O exemplo, bem, o exemplo deveria começar pelos políticos com responsabilidades acrescidas: se a atitude do Presidente da República foi exemplar (agarrou a catástrofe com ambas as mãos e dela tirou as devidas consequências), as palavras do primeiro ministro deixam muito a desejar (aquela mui desalmada afirmação não quadra com as suas elevadas responsabilidades políticas). Bem eu disse que me sentia a escorregar pelo declive de filosofias fáceis... Resta-me desejar que não estando a salvo de tragédias futuras (ninguém está), sejamos sérios, aprendamos a lição e que tudo seja feito para nos proteger: por incúria ou indiferença ninguém mais morrerá. O declive em que agora acabei de escorregar é um declive de utopias? Pois que seja, não retiro nada do que disse.
Adenda (mensagem recebida)
Meu caro admirador de mim sábia e perspicaz e acutilante, pergunto-lhe, quem foi que o autorizou a divulgar os meus pensamentos? Vida, ainda ontem, em público, perorei nos mesmíssimos termos sobre o mesmo triste assunto. Imagine, céus, imagine que até um desnorteado desabafo me fugiu boca fora, este: "o Presidente foi exemplar, o Costa um miserável". Sim, claro, borracha para que te quero, apaguei-o com a raiva com que pude em cima do Costa, só deixei "o Presidente foi exemplar", acrescentando: juntos, orgulhosamente, escorreguemos pelos declives da utopia. Que quer, sou assim, que se há-de fazer! Mais, fiz mais. Como prova de que devemos olhar para a frente, andei para trás no tempo, e fui ler (reler, digo) um texto (e divertir-me nas imagens: até saltinhos dei), texto em que se diz que as alterações da sociedade também moram nas alterações da moda. Ser inteligente, meu admirador, não custa, viver de forma inteligente é que custa, mas eu gosto e gosto e gosto de ser como sou. Ponto, o dia me chama...

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