A interpretação de um refrão de uma canção medieval

Pois aí, lhe digo eu, aí é que está o problema. Senti uma voz conhecida no ar e, óbvio, não tive dúvidas, sabia a quem ela pertencia. Não deixei de responder em jeito de pergunta: aí onde e qual é o problema? Meu admirador de mim, já devia ter percebido que o problema é a falta de sensibilidade para a vida das pessoas que perderam familiares e bens nos incêndios florestais, e o aí, registe, é a Assembleia da República. Essa agora, ripostei, entendo o problema, não alcanço o sentido do aí. Olhei-a de soslaio enquanto ela rodopiava, que linda! Disse ela, em voz de quem tem estudos em cidadania: sabe, não é possível ver a democracia na Assembleia da República. Não percebo, interrompi. Céus, o que eu passo consigo, trauteou com enfado. A democracia, continuou, é de todos, a democracia é a manifestação do poder do povo, os preopinantes da Assembleia apenas (e só) são os representantes (desculpe a rima) do povo, é como a consciência. É como a consciência?! Interpelei-a com a curiosidade à proa dos pontos de interrogação e de admiração. Nem mais, meu admirador de mim e da minha túnica azul de punhos vincados, nem mais, seja, a consciência é a representante do corpo no cérebro, o corpo é quem manda, é no corpo que a inteligência mora, o corpo é que é inteligente, sei eu bem o que digo. E, num risinho de sábia-guicha, segredou-me: é por isso que quando os cientistas observam o cérebro em funcionamento nunca conseguem ver a consciência. Calei-me, que poderia eu dizer, o rumo da conversa era-me totalmente desfavorável, mas ainda arrisquei assim a modos que deixa lá ver: se assim é, como é, como é que o corpo acolhe no cérebro os representantes do corpo? Resposta dela na ponta da língua: através da activação de redes hebbesianas, são essas redes que promovem a aprendizagem. Pior a emenda que o soneto, pensei comigo, encostou-me à parede, ignorância minha tão grande. Ela não se conteve... Não se esforce muito, um dia destes eu explico melhor; por agora, fique-se com uma sugestão: tente ler as palavras e os sentidos das palavras nas frases (da esquerda para a direita e de e da direita para a esquerda: desculpe fugiram-me as palavras para a política), encontrará um mundo novo, um mundo de novos sentidos. Quer dar-me um exemplo? Pedi sôfrego. Sorriu e disse: interprete um refrão de uma canção medieval e saberá, este: “A vida de luz ai ué…, a vida de amora ai ué…”. Não parece difícil, respondi, penso que: “Onde mora a luz da vida…, onde mora a vida de uma amora…”. Nada mal, concedeu, mas leia (e oiça) com atenção o sentido escondido do refrão, este: “Eu (a)í azul e dádiva, eu (a)í aroma e dádiva”. Caí redondo no meu sofá confidente, e perguntei: o refrão da canção medieval também fala de si, da sua túnica azul, da sua forma de estar na vida, do aroma que agora sinto? Amora é o feminino de amor? Também, suspirou enquanto se despedia, fala de mim e diz tudo isso, só não diz que eu também já fui estorninha de assobios trinados, agora me vou, lampeira e felina e com beleza pascaliana a tiracolo, o dia me chama...

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