Hoje andei tanto que vou dormir que nem pedra

O melhor deste texto vai ser o título, o qual (registe-se), não é meu, rapinei-o, é a última linha da última página escrita - “crónica de um dia em que fui turista” - de um desconhecido caderninho preto argolado. Trata-se de uma crónica mui bem escrita e algo corrosiva, diga-se de passagem. Nela, as palavras aprumam-se para respirar e, por vezes, até conversam e riem entre si, tipo: “Santo Deus, estou com uma asa derreada, tanto calor, andei imenso”, “cheirava mesmo a cebola, daquela refogada até ao caramelo”, “excelente ideia ir a um concerto de órgão à hora do almoço”, “que diacho, cativa-me a música renascentista”, “o museu continua com obras infindáveis”, “na loja vida portuguesa uma rapariguita falou-me em inglês”, "já aprendi a fechar os olhos ao ridículo",“o que mais me angustiou foi ver a decadência e o abandono (até ofende), a sujidade e o vandalismo, de estações de comboio de edifícios e de antigas fábricas”. Quanto eu sorri, ainda agora estou pasmado, quando uma daquelas palavras, rabiscada em letra redondinha, saltou do caderninho preto argolado e me invectivou guicha e gaiteira: a crise recente agudizou as situações e as portuguesas e os portugueses (a fazer fé nos dados divulgrafos pelo Banco de Portugal) não andam a poupar nada e andam já a viver na folia e à tripa forra; céus, o desmazelo e a falta de gosto deste nosso povo é gritante e envergonha-nos. Seja o que os deuses quiserem, pensei com os meus botões, se uma palavra fala comigo, eu falo com ela, e perguntei-lhe à queima roupa: quando disse dados divulgrafos, queria dizer dados divulgados, certo? Não, não, ripostou sem cerimónia, eu disse mesmo dados divulgrafos, será que nunca ouviu falar na teoria dos grafos, ou seja: cruzar os resultados da teoria dos grafos com divulgar dados, dá…? Embatuquei (teoria dos grafos, foi mesmo o que ela disse, mesmo?!), até o pensamento me doeu em dor moinha, caí na lura da minha esperteza, toma e embrulha que é para não te armares em esperto. Mas, em estado de vida suspensa e afogado em dúvidas, ainda me questionei: como pode uma palavra fazer de mim gato-sapato? Ela, tendo percebido o enfiamento da minha pergunta, divertida, riu-se a bom rir, mirou-me de alto a baixo, e apontando (uma palavra a apontar, endoidei pela certa!) para a última linha escrita no caderninho, trauteou em som colorido: “hoje andei tanto que vou dormir que nem pedra".
Adenda
Prevendo-se um dia de muito calor, hoje vou (re)ler as "Cartas Filosóficas" de Voltaire.

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