Mais um cego que sonhou que era cego

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Pois sim, claro que sim, sou eu e aqui estou hoje, um dia feriado e um dia santo, um dia em que não se trabalha e nem se come carne. Que tal uma posta de bacalhau ao almoço, no forno, com cebola e regado com azeite produzido a frio, acidez nem vê-la, que tal? Antes de aqui chegar, pense só, já fui à minha varanda terraço-água cumprimentar as flores e os pássaros, uhm, muito calados hoje, quer conhecer um segredo? Linda de se mostrar em fragmentos de beleza e bonitez de sorriso, vi, garanto que vi (e ouvi) a única fada que não dorme, com um livro na mão, fazer duas perguntas: se eu ia comer bacalhau ao almoço e se eu queria conhecer um segredo. Respondi, vidrado nas suas formas perfeitas: não, que vou comer peixe, vou, talvez bacalhau, sim; se quero conhecer um segredo, sim quero, mas porque é que traz consigo o "Ensaio sobre a Cegueira" de Saramago, o dia de hoje (sexta feira santa) é um dia pouco próximo de Saramago, verdade? Rodopiou (gosta de ser apreciada, sei), e não foi de modas: primeiro a sua maneira de escrever os nossos diálogos tem parecenças com a escrita de Saramago e depois, no depois é que mora o busílis, depois, o Saramago, se estivesse vivo, escreveria sobre a sua cegueira de mim. A minha cegueira de si? Deixe para lá, um dia falamos disso com tempo e com vagar, agora imagine-se apenas um cego que sonhou que era cego e sim, claro, pode recorrer ao tacto, gosto e quero e aprecio... (Duas horas passadas) ... Sabe (que linda fica corada e de olhos grandes bugalhados!), sabe que, trauteou ela, tenho que me ir embora, mas devo recordar-lhe que ontem me enganei: preciso de estudar um pouco mais sobre a fungivibilidade ou infungivibilidade dos animais. Porquê? Ora essa, porquê, porque os animais não pertencem ao reino dos seres humanos. Mas os seres humanos não são animais? Perguntei preocupado. E ela, de cabelo apanhado (que linda estava): longa vai ser (um dia) uma nossa conversa, vou apenas deixar-lhe uma pista. Pense comigo. Sou todo ouvidos. Pois bem, eu creio que estamos, mais uma vez, à beira de viver um novo Renascimento, não esqueça que o Renascimento foi tão só recuperar um saber olvidado, o saber dos clássicos. E eu, atónito e numa espécie de quebranto: e...? E ela, gaiteira: pois é, se regressarmos ao saber (ao fundo esotérico) do saber olvidado dos alquimistas (os alquimistas foram os primeiros neurocientistas, ups) perceberemos que a mente (a energia vital e vitalizante) é primeira (a priori) que o cérebro, seja, o cérebro-matéria é energia transformada; mais, saberemos que pensar pelo lado dos quatro reinos - mineral, vegetal, animal, humano - nos aproxima da leitura da natureza feita pelos alquimistas (que não podiam com a Inquisição), pense agora, a título de exemplo, no ciclo das estações do ano: é ou não um ciclo em que a energia se transforma em matéria? Eu nem sabia o que dizer. Articulei a medo: trata-se de um regresso ao futuro? Nem mais, suspirou, acaso julga que o futuro é uma carta fechada e que a curiosidade de a abrir ainda estava por nascer? Curiosidade minha! Atente que a energia criou o universo e a vida e a vida com cérebro: por isso, tanto (pergunte aos astrofísicos), mas tanto, o universo e o cérebro se parecem. Céus, eu já falava como ela, quase que me diz que estamos muito perto de conhecer a mente de Deus. Mais um cego que sonhou que era cego, ciciou enquanto se despedia; e, zás: veja se, desta conversa, sonha um texto mui bonito, bonito e escrito em escrita pessoana... Eu, agora, por aqui ando, pasmado!
Adenda
Que notícia tão estranha (ou talvez não!), e logo em tempo de Páscoa: às tantas pensam que todos são cegos, até um cego vê que não, adiante...

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