Pensei comigo: se o filósofo sou eu, vou ali e já volto

paul jorion
Temos, digo, amanhã vamos ter mais uma hora de sol, deve acertar o seu relógio, não se esqueça, portanto agora é a hora de conversarmos um pouco, tenho que lhe contar um sonho, estou desejosa de lhe contar o sonho que tive. Madrugada alta, frio de neve, chuva a bater nos vidros da minha janela de guilhotina, e ela, a única, narizinho bem modelado, cabelo apanhado para me agradar, lampeira, a falar e a enroscar-se na minha manta de lã de ovelha churra. Tão bem me sabia o calor e o perfume dela que preferi saborear o momento do abraço tão desejado. Quer então falar-me do seu sonho? Não vale a pena, respondeu, agora sei que no meu sonho o vi a si quando era novo e depois mais velho, já de cabelo e de barba branco-agrisalhado, tipo deus barbudo que sai do alinhamento da vida-grácil como uma aldraba sai de uma porta, que coisa estranha, falavam os dois como se partilhassem conhecimentos íntimos sobre mim, até corei; será verdade o que eu ouvi, diziam que eu sou uma moldura cheia de uma obra prima, que sou genuína, admirável, encantadora, deliciosa? Santo Deus, percebi, só agora percebi, gosto e gosto. Sim, isso é verdade, senti-me a dizer com leve emoção, sempre que estou perto de si, sou sempre dois, sou um-eu mais arrebitado e sou outro-eu mais calmo, e fico feliz por assim ser. Conversa estranha a nossa, ciciou em voz suave, mas sinto agorinha mesmo que sim, céus, que manta tão quente, a sua ternura está a elevar-se, acha que podemos, mande os ciúmes às malvas, ui a sua confusão inicial com as premissas, avante. E eu, ansioso e precipitado, a tentar adivinhar o que ia acontecer. Ainda de olhos grandes dilatados e faces rosadas (tão linda!) depois da refrega mansa, em momentos também acelerada e líquida, disse que me tinha trazido (só emprestado) um livro curioso, que o seu autor também era assim a modos que filósofo da antropologia artificial. Antropologia artificial? Riu-se imenso (hã hã hã) com a minha pergunta, e: pois, imagine só que naquele livro se conta que uma empresa nomeou um computador para um dos seus órgãos directivos. Não! Suspirei. Não se apoquente ou amofine, descansou-me, os conceitos de pós-humano e de trans-humano emergiram desde que Peter Sloterdijk (em 1999) escreveu "Regras para o parque humano", seja, explicou ela: defendendo que o ser humano é, desde sempre, o resultado de uma antropotécnica que procede por selecção e domesticação, ele pôs fim ao discurso do humanismo e interrogou a condição que no seres humanos desempenha o saber filosófico, a literatura e as artes. Banzado, eu olhava para ela que tinha acabado de se levantar e se dirigia para a cozinha com leveza dos pés e personalidade, enquanto ajeitava o cabelo (perfeita nas curvas, partiram o molde pela certa), quando: deixe para um outro dia a antropologia artificial e as barreiras metafísicas, agora vou fazer um chá de camomila e torrar uma tira de pão centeio, também quer? Sim, sim quero, bem haja, preciso mesmo, vou já ter consigo... Pensei comigo: se o filósofo sou eu, vou ali e já volto.

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