Uma estória que é uma arca de sabedoria e lucidez

Já são quase dezassete horas (ouvi distintamente o segundo sinal para a missa da tarde), o tempo está (continua) frio, o ar é de pesada quietude, o céu sem aves, nem sinal de vida ou afazeres por perto. Caminho, digo, ando compassadamente, olhos postos no horizonte, atento às sinuosidades de um formigueiro e ainda como o sol de inverno à vista. Deste lado da barroca o terreno ondula, vai descendo para a ribeira (muita água leva a ribeira, é tempo dela). Num enorme descampado destaca-se um pinhal pequeno, onde (não pode ser, belisquei-me, pode lá ser) um vulto de uma anciã (de luto vestida), arrebanha sabe Deus que gravetos. Companhia não se lhe adivinha, nem burro ou cabra por perto ou gente para pedir ajuda, nada, nem cães se viam, até as lagartixas tinham dado de frosques. Paro e olho. Ela, curvada, não dá conta de mim e eu não quero perturbá-la; mas daria tudo para a ouvir falar, para ela me contar estórias, para ela me dizer o que lhe vai na alma. Arrisquei com ar jovial: “Boa tarde a vossemecê, como vai, isso é que é prevenir! E ela, de falas curtas e sobrolho franzido, mas sem azedume no tom do voz: Bem, vou andando bem, graças a Deus e a sua Mãe Santíssima ainda com alguma saúde; cá vou indo como Deus quer e como os mafarricos dos achaques deixam, já vou voltar para casa, deixei a panela ao lume e o arroz a cozer, não me posso demorar, bom vento o leve onde quer ir”. Agradeci enquanto acenava que sim. Adiante, epílogo... E o vento não se fez rogado, levou-me a casa dela. A curta estória (do tempo do volfrâmio e que tem a ver com laranjas) que ela me contou até às vinte duas horas e vinte dois minutos (à lareira com achas a crepitar), é uma estória, digo, é uma arca cheiinha (cheia de cagulo) de sabedoria e lucidez. Prometo consultar a minha consciência crítica, ela (sábia) me dirá o que devo fazer, tão indeciso estou quanto à necessidade de divulgar aquela curta (e curtida) estória do tempo (farto) do volfrâmio, tenho a sensação que a estória alberga um mistério. Ah, não me esqueci de lhe agradecer a simpatia sem limites, o sorriso matreiro, e o meio copito de jeropiga caseira que ambos (palavra puxa gole e gole puxa palavra) bebericámos. Aguente-se com as frieiras (é tempo delas) mas mande a gripe dar uma volta ao bilhar grande, rematou ela afoita e guicha, quando eu (apressado) me despedia...

Comentários

Mensagens populares