Não é que eu penso o mesmo que Proust?
Juro que, absorto na
filosofia levinasiana (a ética é a óptica espiritual, escreveu Emmanuel Levinas),
juro que não dei pela chegada da sempre acutilante (e única) mensageira de
novidades imprevistas. Meu caro admirador de mim, ciciou ela, essa é boa, então eu sou
mensageira de novidades imprevistas? Só me faltava essa, que sina a minha, há
tanto e tanto tempo que sou inspiração e motivo para quem sabe olhar o
espiritual, só que também sou de carne e osso e em curvas sinuosas me desvelo. Adiante. Nem de
propósito, olhe esta cópia (de um quadro célebre) que lhe ofereço: é uma obra do pintor inglês Haynes
King (1831 – 1904), é um quadro pintado em 1872. Pronto, já entendi, os seus ciúmes já
o atormentam, óbvio que sou eu, admirada pelo Haynes, e que mal tem isso? Mal algum,
nada não, não tem mal algum, respondi, o que é lindo deve mostrar-se; gosto,
mas bem que lhe pergunte: o seu sentimento, a sua beleza e a sua inteligência
são intemporais? Ela, divertida, olhou-me como quem responde (sem margem para dúvidas) à intemporalidade
da sua beleza e da sua inteligência; e, quanto ao sentimento, disse: era mesmo da
origem dos sentimentos que eu hoje gostava de falar consigo. Guardei de Conrado
o prudente silêncio. Não se deu por achada; e, linda de viver, trauteou: os sentimentos nascem,
metamorfoseiam-se, desaparecem, tornam-se rígidos (céus, suspirou e disse: corei, vida); e, acudam, continuou, algumas vezes até se liquefazem... Não brinque, ripostei, eu estava a falar mesmo a sério.
Sorriu, e sugeriu-me que cruzasse o pensamento de Damásio e de Espinosa e de
Proust, a propósito do nascimento e das metamorfoses dos sentimentos.
Preparava-me para lhe responder torto. E ela, gaiteira: calma, não se enerve, eu
expilico (estava a brincar, percebi que ela queria dizer explico), oiça com muita atenção, como lhe convém:
o Damásio (um neurocientista contemporâneo) fundamenta-se na evolução da
história natural e encontra a origem dos sentimentos na actividade cerebral: o
Espinosa ((um filósofo da Natureza: natura (em língua latina) é o que está a nascer)) diz que os sentimentos são leis da Natureza sujeitos à
mudança e à renovação; Proust (um escritor) refugia-se na literatura para
encontrar a origem e as metamorfoses dos sentimentos no tempo íntimo. Desculpe,
tive de a interromper, desculpe, mas deu saltos no tempo que nem um canguru da
Austrália, seja: o Espinosa é do século XVII, o Proust do século XX e o Damásio
é do nosso século XXI, posso eu comparar o pensamento deles? Não tem que comparar,
disparou com os olhos grandes a falar, tem de integrar o pensamento deles (os
três), isso sim. Não sou capaz, desisto, retorqui. Nunca se desiste, respondeu-me ela em
voz manteiga, pense comigo em forma de
metáfora: imagine que (1) está a chegar a Lisboa, vindo de avião da sua
adorada Barcelona, está agora a entrar pelo lado de Almada (o mar, o rio, os
montes, os vales, os campos, as casas, as avenidas, os carros e o aeroporto) – eis a leitura que Damásio (história da
evolução natural do cérebro) faz da origem dos sentimentos: (2) acabou
agora de aterrar no aeroporto e já a ver a fachada dos edifícios – aí tem a forma de pensar de Espinosa (a
leitura da filosofia da realidade dos sentimentos) quando considera os
sentimentos leis da Natureza; (3) agora já se levantou do seu lugar e, de mochila
às costas, já atravessa a manga de acesso aos edifícios; e, nem mais, entrou no edifício principal – consegue ver, na atarefada vida (vida fada,
ups) dentro dos edifícios do aeroporto, a forma escolhida por Proust para
perceber a origem e a metamorfose dos sentimentos? Abri a boca de espanto, que sábia…
E ela, despachada e guicha: lindo, espertinho, percebeu; a minha inteligência é
contagiante, sou assim (de nascença) que se há-de fazer! Obrigado, ainda consegui articular, obrigado,
gosto tanto, gosto tanto de si! Rodopiou e, emocionada, pediu-me que ouvisse o que ela tinha escrito na página 77 do seu caderninho preto. Deliciado, ouvi-a ciciar (com
voz de hã hã hã que bem conheço), assim: aquele Proust, sempre o mesmo, assim escreveu
(para todos lerem) o (dele) sentimento de
mim, que ousado, oiça: “ela sempre existe em mim sob a
forma do seu nome, nome que se inscreveu no meu cérebro e nunca mais parou de
ali permanecer inscrito; se penso em voz alta, repito-o incessantemente: e a
minha fala é como se houvesse sido transformado em pássaro, um pássaro como
aquele da fábula, cujo canto repisava interminavelmente, o nome daquela que,
quando homem, havia amado. Encontro sempre o nome dela e, se o calo, parece que
o escrevo em mim. O nome dela deixa a sua marca no meu cérebro, e o meu cérebro
há-de ficar para a vida como uma parede onde alguém se divertiu a escrevinhar o seu nome e eu preciso dela para viver”... Não é que eu penso o mesmo que Proust?
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