Lição Deweyana: o ver original é tocar
Gosto
dela, gosto daquela mulher transmontana de fibra, ainda bem que ela valorizou os
burros: são animais inteligentes, quanto eu sorrio quando me demoro na imagem
daqueles três burritos pensantes (Santíssima Trindade, o 3 é a conta que Deus fez).
Não, chega, há limites, sabe por acaso que horas são? Perguntei à única fada que sempre que lhe
dá na real gana (gana, uhm, rima com transmontana) me acorda madrugada dentro, vestida com uma túnica azul de punhos vincados (túnica que sempre me parece mais elegante que todos os vestidos).
Então não sei, respondeu, claro que sei, não sei eu outra coisa, mas que quer, sou assim de origem, que
se há-de fazer! Está frio, sussurrou, que saudades eu tinha da sua manta de lã, olálá, enroscou-se, e suspirou: manta nova, de lã de ovelha churra, gosto, que é feito
da manta de lã de ovelha merina? Que podia eu fazer se mesmo sem manta eu sentia
calor, tantas eram as labaredas de amor que dela chispavam? É preciso descaramento, disparei, palmou-me a manta de lã merina e não
sabe dela, chiça! Acalmei-me (só mentalmente, desgraçado nervosinho miúdo que me atazana quando ela está por perto - gosto de dizer atazana (de atazanar: deixar louco com beijos e ternura) -, e fiz
que dormia. Não se dando por achada, corpo lindo à mão de semear e colher, foi dizendo (baixinho, naquela voz única de
hã, hã, hã) que tinha estado a reler J. Dewey; e, sublinhou, que lhe agradava a ideia de
experimentar o pensamento. Experimentar o pensamento?!!! Senti-me a perguntar. Nem
mais, respondeu-me sem tem-te nem mas, dizia John Dewey e eu concordo (o sorrisinho dela deixou-me
desconfiado) que “o ver original é tocar"; sendo assim, garanto, pode experimentar-se o pensamento. O ver original é tocar, foi o que disse? Não precisei
de resposta quando a ouvi dizer, serena e sorridente: calma, devagar que tenho pressa. Adiante. Passaram vinte minutos de grande turbulência, e ela: dar
corpo a uma ideia é experimentar o pensamento (desperto, atento, profundo). Amanhã, quando acordar, vou repescar os (múltiplos) significados de turbulência; e, sublinhou, já
decidi, começo pelo "Número de Reynolds". O número de quem, interrompi
desastradamente, o que aconteceu entre nós foi algum número de circo? Tanto os olhos
grandes (misteriosos) dela se riram que até a minha manta de lã de ovelha churra sorriu. Ciciou-me ainda com
ar de fada guicha olhuda: o "Número de Reynolds" (há quem diga coeficiente em vez de número) é uma quantidade adimensional que tem a
ver com o regime de escoamento de fluxo de um fluído (laminar ou turbulento). Disse mais: explicou-me que o "Número de Reynolds" poderia ser um bom ponto de partida
para uma coreografia de dança. Eu, atarantado e um pouco ridículo (diga-se em abono da verdade), continuava nas nuvens, absorto na sua caleidoscópica e doce sensibilidade, questionando-me como quem quer saber: o "Número de Reynolds" pode ser um bom ponto de partida para uma coreografia de dança, foi o que ela disse?! Percebi: dizer "dar corpo a uma ideia" é o mesmo que dizer "o ver original é tocar", que guicha!
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