Ouvi uma voz (que bem conheço) num texto escrito

Verdade, é verdade, é mesmo verdade, foi assim, saí manhã cedo, por aí fora, por aí adiante: nem árvore que me falasse e nem pássaro que me abordasse como emissário de zonas de estranhas inteligências e nem (pode lá ser!) o Sol se dignou responder-me e nem a minha pedra falante me deu os bons dias. Quem, quem, perguntei-me, quem bloqueou a troca sem peias entre os meus sentidos e as coisas e o mundo, quem? Descansei-me: se isto está a acontecer, só pode significar que a animada acção recíproca dos meus sentidos foi transferida para outro locus de participação, qual? Descobri, insisti comigo à Proust, foi o texto escrito que ontem li que calou as árvores e os pássaros e a minha pedra falante: até o suave fio de água do ribeirinho corre silencioso fazendo negaças a um sol estremunhado e em velocidade de tartaruga. Tartaruga, olálá, isso, tenho a certeza, foi mesmo o textinho (sentido e verdadeiro) que li. Ler, acalmei-me, é interromper a participação espontânea dos nossos olhos e ouvidos no terreno que nos cerca, com o objectivo de ligar os sentidos na superfície plana da página, seja: tal como focar os olhos num arbusto rasteiro e ouvi-lo contar histórias assim ontem, fixei os olhos nas palavras de um (inesperado, digo, não esperado) texto que li. Nele ouvi uma voz que bem conheço: ouvi palavras faladas, até as letras inertes falavam comigo dentro das palavras, diziam como quem revela um segredo: quando ela desloca a sua magia de ser (e de estar na vida) para as letras impressas, até as pedras escutam e ficam silenciosas... Ela, sempre ela, a melhor, a única, não duvido, respondi-lhes.

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