Na alimentação a boca é o laboratório e o nariz a chaminé
Eu sei, meu caro
admirador de quase tudo o que digo e faço, eu conheço a sua estratégia: lê uma
mensagem minha e, záscatrapaz, há que deitar cedo, encosta a face numa almofada parecida com as minhas (muitas) e adormece a pensar em mim; mas depois é que são elas, vida, é acordado pelos
meus pensamentos, verdade? Verdade, respondi, é verdade, é mesmo assim, respondi
à única fada que me conhece como ninguém. Adiante, disse ela. Adiante que
preciso de lhe dizer que ontem (ontem foi dia 13 e a promeira, digo, a primeira
noite de verão) se me revelou a minha alma, e, mais, a minha alma falou comigo. Não,
exclamei, não, deixe-se disso, não pode ser. Ajeitou a túnica azul clarinho (a
alma dela são as suas curvas suaves, dei comigo a pensar), e pediu: deixe que
lhe conte. Por quem é, disparei, linda como está e com vontade de me falar da
sua alma, só se eu fosse tolo é que a não ouvia. Muito bem, não se fez rogada,
então foi assim: desatei a olhar para a imagem das árvores e, cirioso, digo,
curioso, a imagem vista do lugar onde eu estava (o meu sofá maior) tinha um
efeito misterioso, havia uma luz no topo, começou por parecer uma estrela e
depois, garanto, passou a ser um anjo, um ser de luz. A sua alma, interrompi, é
um anjo? Nada disso, acalme-se, acalme-se: a minha alma é o meu cérebro
em funcionamento e o cérebro é indispensável para a vida. Mal que lhe
pergunte, atrevi-me, cérebro, alma, vida, mas é preciso comer e beber todos os
dias, certo? Rodopiou (que jeito maneira!), sorriu (a comissura dos lábios apelativos e as
narinas vaidosas brincavam ao desafio), e: pois claro que sim, mas não é na boca nem no
nariz que encontraremos o segredo do que é bom para comer e beber, a decisão da
escolha cabe ao cérebro, a garganta propõe e o cérebro dispõe; mais, fixe que
na alimentação a alma se alimenta do aroma, alimentação e sagrado andam lado a
lado. Se assim é, não estive com mais medidas, conhece alguma receita
interessante? Vamos lá então, assentiu; apenas para nós os dois: primeiro, use um pimento vermelho e um
pimento verde (a associação do vermelho e do verde, cores complementares,
confere à visão uma tonalidade afectiva do alimento), deixe os pimentos 30
minutos em forno quente e depois deixe arrefecer em papel; de seguida, corte dois tomates (sem pele) e uma cebola em cubos (mais uma nota de vermelho que
sublinha o branco da cebola já que os dois tomates e a cebola participam no concerto
aromático com os seus tiazóis e os seus polisulfuretos)... Não fui capaz de
me conter e desatei a rir: os dois tomates e a cebola a participarem num concerto aromático com os seus tiazóis... Felizmente que ela, bem-disposta, entendeu não só o meu rir quanto onde eu que ria, digo, queria chegar. E tanto
entendeu, que, sem se dar por achada, se despediu gaiteira, linda e corada; e, perspicaz, trauteou: o olfacto
e o gosto são um único sentido e, sendo assim, na alimentação a boca é o laboratório e o nariz
a chaminé...
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