Logo hoje, hoje dia 5 de Julho!

Só hoje! E logo tinha que ser hoje, hoje dia 5 de Julho (vá lá saber-se porquê), logo hoje (dia 5 de Julho) não consigo escrever depressa e bem. A bem dizer nunca fui capaz de escrever depressa e bem. Hoje (logo hoje dia 5 de Julho) tudo é pior, tudo para mim são obstáculos: vocabulário, népia, deu de frosques; ritmo, enredo, comprimento de frases, só defeitos. Reescrevo tudo e mais um par de botas, e zás, nada, até em vez de pemba escrevo pimba, raio de poema ébrio me saiu o meu escrito atrapalhado, Santo Deus, o abuso dos pronomes possessivos, a deselegância das preposições, a mudança de rima, um verbo vadio dá-me cabo da cachimónia e até a memória me nega os sinónimos que comprei numa feira medieval. Adiante, hoje é dia 5 de Julho e tenho que escrever um texto bonito com um sorriso doce numa ponta, isso, tipo teia de aranha preguiçosa. Corro ao dicionário. Pior a emenda que o soneto: o texto que escrevi (hoje dia 5 de Julho) parece-me alheio, gaguejado quando espreita o mundo. Fico-me por aqui; se cair o Carmo e a Trindade, paciência. Estou cheio de inveja, inveja de quem escreve uma novela em três semanas, um poema por dia e um romance cada três meses como quem pisa o chão molhado da areia na praia. Shiu, quero ouvir... O quê, como, devo contar uma estória, cortiço?! Quem foi que falou em cortiço? Praia do cortiço, do cortiço, é isso?
Notinha de rodapé
Acabei de ler o que escrevi. Pois é, se não é, parece, parece um texto surrealista. Surrealista na linha de Breton, em jeito de escrita automática, seja, sem mais lógica que a livre associação de ideias, deixar que a escrita revele uma realidade superior. Se não é um texto surrealista, até que parece, parece mesmo, mesmo. Logo hoje, hoje dia 5 de Julho!

Adenda (mensagem recebida)
Pois sim, meu caro admirador das minhas qualidades inatas e únicas, sinto o seu desnorte, vida minha, céus, sempre perde o jeito de escrever quando eu lhe falto. Para que hoje (dia 5 de Julho) não seja assim, decidi enviar-lhe uma receita para um texto. Leia com atenção e esmere-se. Vamos lá.
Primeiro os ingredientes:
 - (1) alguns gramas de papel e lápis (se não tiver consigo este antigo ingrediente, pode usar umas letrinhas de teclado (desde que as amasse com desvelo e cuidado, dando ao pensamento tempo de levedar); (2) uma colher mediana de memórias com sorrisos; (3) algumas especiarias do Oceano Índico (se não tiver, acenda uma vela de canela ou prepare um chocolate espesso e morno para saborear nas pausas); (4) uma vida inteira a que se retiraram as amarguras e ressentimentos porque lhe podem estragar a receita; (5) uma pitada de olhar nos olhos sem mentira ou omissão (como uma praia deserta ao final da tarde, em que nos sentamos para saborear a sabedoria do silêncio que nos revela, não a viagem terminada mas o ponto onde chegámos, para olhar, com mais experiência e clareza, outros horizontes).
De seguida a preparação:
- (1) ponha em lume brando os momentos que a memória preservou (e preencheu) de sorrisos; (2) perfume com canela e prove o chocolate; (3) deixe que a química neuronal ligue os ingredientes; (4) sente-se à janela e olhe o horizonte-água: pinte nele um mar conhecido, em final de dia, com toda a beleza e sabedoria com que o sentiu.
Agora sim, comece a escrever
(Se acaso ouvir um tilintar de asas ou perceber o ar impregnado de essência de jasmim, não se distraia: é apenas a sua fada preferida a sair pela janela para ir semear umas quantas estrelas).

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