Concordo, vê-se bem que aquela voz é uma pessoa

Creio, digo, tenho a certeza que foi Fernando Pessoa que disse que escrever é esquecer. Nada disso, escrever é lembrar, o que não se escreve, não existe. Quem, por exemplo, escreve (e rabisca desenhos anteriores à escrita) em caderninhos argolados, embarca na aventura do dizer, aventura que é a verdadeira aventura: escreve-se para existir e o Pessoa bem que o sabia, pois existiu para escrever, aí continua porque escreveu. Ruminava este pensamento com os meus botões, quando uma torneada voz feminina (que conheço de gingeira), de conluio com alguns (meus mas poucos) neurónios inteligentes, não esteve com meias medidas, e: ah pois sim, até que concordo que escrever pede repouso (foi o Bernardim Ribeiro que disse, foi, pois não foi?), pede repouso para não se perder o fio condutor da escrita, mas que bom é perder o fio condutor, desafiá-lo, complicar o bordado da escrita emaranhando-o numa calma via graça. Nem sei e nem lhe digo e nem lhe conto, se esse tal de Pessoa (e mai-los outros nomes que ele inventou com máscaras de si, digo, dele) tivesse percebido o valor da Ofélia: tão avançada no tempo, trabalhando, andando sozinha no eléctrico, uma jóia delicada, linda de viver e de amar. Uhm, pensei comigo, agrada-me pensar que o sonho é parte do real como o repouso é parte da acção. Mas não me sai da cabeça: quão ricas seriam as migalhas de pensamento que sobrariam de uma conversa de alcova entre a Ofélia e o Pessoa! Agora o dia já está a cair, um melro de bico amarelo apanha migalhinhas de bolachas no chão (serão migalhas de pensamento, será melro ou melra?). Quanto mais transparente é a escrita mais a poesia se vê, dizia o Gabriel García Márquez. Concordo, vê-se bem que aquela voz é uma pessoa.

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