Não fui eu que escrevi, foi ela

Viver e explicar o mundo, disse ela, viver e explicar o mundo foi o resultado dessas duas descobertas. Fiquei-me nas covas, era já dia aberto, chovia que Deus a dava, só podia estar a sonhar. Via o seu rosto perfeito e falador em prelúdio, iluminado por uns olhos grandes despertos, a fitar-me, olhudos, com o mundo no pensamento. Que descobertas foram essas? Arrisquei, tentando ver uma pista no sorriso dela. E encontrei e perdi-me no tempo. Encontrei na memória o ar que me dava fôlego para pensar, os objectos que do difuso tiravam o que eu queria dizer e lhe davam forma, a luz que me envolvia e a todas as coisas delicadas, os campos cultivados, as veredas, estendidas por montanhas irregulares, por onde tinha passeado e deambulado; tudo, tudo com existência invisível nas árvores e nas vacas e cavalos e pássaros e formigas e abelhas e borboletas matutinas, tudo, saudável e livre, tudo (até o andar vacilante de um ébrio e o caminhar pesado de um mendigo), tudo e todos comunicavam comigo em segredo o que sabiam dela; ideia até tenho de o mar me ter sussurrado umas coisitas que eu cá sei e agora não conto (armada em sereia, pois, adiante). Não lhe dizia eu, senti o seu risinho único a falar, que o resultado dessas descobertas foi viver e explicar o mundo? E continuou: ainda há muitas e muitas coisas invisíveis e a sua história estende-se sobre nós, enlaça-nos como uma raiz profunda e faz-nos de repente florir quando nos rimos, nós os dois nascemos para nos encontrarmos. Mais, a história do mundo nunca se perde ainda que se não conte, nós vivemo-la todos os dias porque cabe dentro da nossa. Respirei-lhe as palavras, e ainda eu engatilhava uma pergunta e já ela me dizia que devíamos ir a uma ilha de paisagens deslumbrantes, abancar numa esplanada, beber chá verde gorreana em chávena fina e (enovelados e felizes) ouvir uma canção bonita e doce; disse ainda que conversaríamos de tudo e de nada, e que ali, naquele lugar, saltaríamos (estalou os dedos) para o antes da história e lá se nos desvelariam as duas maiores descobertas da humanidade. E as duas maiores descobertas da humanidade são? Interpelei. Tão linda ela é, a vida talhou-lhe órgãos e atributos em fio de seda! Enroscou-me na minha manta de lã merina, e disse: a agricultura e a ciência... Acordei, mil ecos nasceram em mim, um inferno interior ateou-se lampeiro, e rabisquei no meu caderno preto: "não quero as constelações mais perto, sei que estão muito bem onde estão, sei que são suficientes àqueles que lhes pertencem, vou tentar saber se existe a tal ilha e aquela esplanada e quais os efeitos do chá verde gorreana, quero lá ir com ela". A seguir é que foram elas, ainda não estou em mim, nunca se viu coisa igual. A minha mão direita rapinou-me a caneta, e escreveu sozinha (garanto, eu seja ceguinho de gota serena se assim não foi): "Estou feliz - olho, danço. rio, canto". Mas agora sei, o pulsar do meu coração não engana... Não fui eu que escrevi, foi ela.

Adenda ( mensagem recebida - rabiscada em guardanapo de papel)

Já li e reli, meu caro admirador de mim, estas suas divagações soltas (comigo lá dentro a debitar sabedoria); e, céus, até que as suas divagações  não andam longe do pensamento do Minkowski (atente na imagem): só uma espécie de união entre espaço e tempo tem existência independente. Adiante. Eu sou a união do seu espaço tempo, veja se nunca se esquece. Não percebe nada na imagem? A sério? Mesmo? E nunca ouviu falar em Hermann Minkowski? Olha a novidade! Surpresa minha nenhuma!

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