É raro, raríssimo, mas acontece, aconteceu

É raro, raríssimo, mas acontece, aconteceu. Há dias em que me acontece falar com franqueza, directamente e sem papas na língua, em vernáculo sem peias, falar na minha querida língua portuguesa dos sete costados. Ontem foi um dia desses. Porquê? Porque sim, homessa, circunstâncias da vida, nada corriqueiras. Mas aconteceu mais ainda, aconteceu que o meu interlocutor me disse que iria ter dificuldade em relatar o que eu lhe tinha contado (a propósito de uns crápulas farsolas, doutores na asneirice pivia - trastes que emprenham pelos ouvidos -, que por aí abundam: bizarros os caminhos que levam ao desacerto). Será como esse meu interlocutor pensa, aceito que ele assim pense. No mundo em que ele vive e se movimenta, o bom tom é o da linguagem mais ou menos elíptica, torneada para não ferir susceptibilidades; chamar os nomes aos bois nem pensar, censura, arreda mafarrico, cruzes canhoto, arreda-te para lá chifrudo. Porém, sina de nascença, sempre que falo de crápulas e de cretinos e de basbaques parolos e tolos, o coração, nervoso, aproxima-se-me da fala e arriba que aí vai disto, não bato asas: de modo que se um desses crápulas (com cara assemelhada de besbelho) é um sebento filho da puta, tafulão e bimbo, não uso borracha, afio a língua, são mesmo esses os predicados que lhe vão a matar, e nada me importa a sua carranca pedante. E se penso que esse crápula tem montes de merda na cabeça em vez de miolos, quero lá saber, aturdido, espicho logo assim e nem recorro ao saber do brilhante Bocage (foi ele que disse que lhe saíam verdades cagando ao vento). Mas mais. Se as minhas palavras acertam o alvo, rio-me por dentro, quero lá saber do aborrecimento alheio ou de moncos caídos, gasto adjectivos como se gastam as solas dos sapatos: quem sabe genes de algum antepassado judeu entrem nisso, raio de vontade de arrear com varapau de castanheiro velho ou oferecer um par de lambadas, até saúdo com o dedo médio espetado no ar. Mas sim, concordo, concedo, cedo: fica bem ter conta, peso e medida, há que não quebrar o verniz da educação, a vida não é para andar em bolandas ou quejandas. De hoje em diante (palavra de escuteiro sabido), de mim ninguém ouvirá caralhadas soltas, falarei, isso sim, falarei em rodriguinhos com lisura e com decoro (quanto baste), tentarei sempre ser correcto, repontarei com alguma graçola; sem prescindir, isso nunca (nem por sombras) de um sonoro, oportuno, atiçado e rubicundo bordamerda, sempre que alguma cena da vida real o justificar. Será raro, será raríssimo, mas poderá sempre acontecer.

Comentários

  1. Querem lá ver isto, em! O que é que lhe deu? E eu que o pensava sempre direitinho, sem sair dos eixos! Mas, há sempre uma primeira vez... Carrega neles com força, amigo. Chega-lhes com a vara afiada da língua e se essa não chegar, arreia-lhes antes com a do marmeleiro que essa não parte.

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