A Técnica é uma cunha entre a Natureza e a Humanidade


(Carta recebida - rascunhada em jeito de desenhos exploratórios)
Ontem, meu caro, creio que sim, creio que foi ontem, falaram-me de arquitectura e de tempo linear e de tempo originário e de obra de arte e de uma expressão curiosa "às armas", tudo no mesmo dia, é obra (de arte?!). Tu, perguntaram-me de chofre, tu sabes quem tu és? Dei comigo a pensar, enquanto olhava as minhas mãos meninas a falar comigo (as minhas mãos falam comigo, sabia?): "O eu verdadeiro, aquele que tudo sabe, está condenado a prisão perpétua. Felizmente, Deus é grande, a prisão não é à prova de som, deixa passar os sussurros e, em momentos especiais, ouvimos o nosso eu a desafiar o que queremos esquecer da nossa biografia e de nós próprios". Deixei este pensamento a marinar e concentrei-me na expressão "às armas". Conheço da expressão tudo o que todos sabem, um pedido de socorro, uma interjeição feliz, enfim, uso-a bastas vezes, sei que gosta. Mas, céus, não conhecia, não sabia da existência de um tal (açoriano da Horta, imagine só) Jácome Armas. Demorei-me algum tempo à procura de algo novo; e guardei, de um livro dele, isto:
“Da Natureza para o Homem: Caro Homem, disse a Natureza, sabias que o teu maior erro foi teres inventado o espelho? (E o Homem sentiu-se estúpido, não sabia.) Mas não, disse a Natureza. (E o Homem sentiu-se ainda mais estúpido: tinha sido enganado). Então a Natureza disse: o teu maior erro foi teres coberto o Mundo com espelhos Agora, sem te aperceberes, sempre que olhas pela janela e tentas pintar o que vês, acabas por pintar-te a ti próprio. No fim ainda levantas o quadro e dizes: O Mundo. (O Homem ouviu, calou-se e saiu convencido de que ia provar à Natureza que era capaz de ver o Mundo e todas as suas cores. (Até hoje o Homem falhou).”
Demorei-me aqui... Deuses do Olimpo, descobri, inventei! Acudam! Às armas!
A Técnica é uma cunha entre a Natureza e a Humanidade que abre caminho ao desvelamento do tempo originário... Daquele textinho até à imagem que lhe envio, meu estonteado admirador, foi um pulo de felicidade, gosto (e gosto e gosto) de ligar coisas e loisas. Porquê, ora essa, porquê?! Porque sim. Eu explico-lhe por partes, como convém. Assim. Arquitectura, a imagem é parte de um acervo de imagens (de maquetes que concentram o espaço e o tempo) que estiveram na base da construção de uma biblioteca (com um nome feio, mas enfim, fábrica de palavras, vou ali e já volto, antes era de arroz, melhor). Tempo linear, é possível partir da imagem para contabilizar o tempo que decorreu entre a ideia, a concepção, os desenhos, a projecção, os materiais, os custos, os contactos, a construção, a inauguração, a utilização da biblioteca (da fábrica das palavras, uhm, não gosto). Tempo originário, qual madalena de Proust, a imagem mostra-nos (em espelho) um tempo originário: água, barcos, árvores, casas, ponte no horizonte (rimou, ups). Obra de arte, largando (fugindo) a sua ligação à técnica de produção de um objecto cultural (do mundo dois, meu caro, do nosso Sir Karl Popper), a imagem foge para o mundo da arte: na espera, paciente, que nela o tempo originário se desvele. 
Só para terminar que a carta já vai longa e já o meu cafezinho matinal me espera (tudo bem, concedo, em vez de pastel de nata hoje será dia de madalena): então não é, não é que tanto ainda me surpreendo comigo? Se estou linda? Então não! Nasci assim, que se há-de fazer!

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