Voy, digo, vou adormecer já-já
Carta recebida
Aqui estou eu, meu caro, a restabelecer-me de
mais um dia de trabalho e escrevendo-lhe esta carta, breve e solta, mas arrancada do
coração e sentida. São 22:22 e, certamente, os relógios cósmicos já se acertaram e
o universo conspira a meu favor (Michio, sempre eu!). Certo é, então, que estas
palavras irão certeiras para o lugar certo e serão sentidas por si como um açafate de frutas várias com cerejas
doces de Alcongosta (na serra da Gardunha) no curuto. Não tenho relatos fantásticos para
lhe fazer ((a não ser (será?) que também na serra da Gardunha aterram naves marcianas, ui, ui, ui que relato, meu caro, que bela é a língua portuguesa!)), e
nem tenho episódios dignos de nota: apenas lhe digo que foi um dia sem registos de
monta e sem pessoas singulares (únicas como eu, quero eu dizer). Outros diriam
que foi um dia sem história, mas sei, meu caro admirador de tudo o que eu
sou, que não aceita uma afirmação destas, pois a verdadeira história é o conjunto
das estórias da história de cada um destes dias assim, aparentemente banais, digo,
triviais. Que vaidosice a sua! Se ter habitado o meu pensamento e os meus gestos
já é suficiente para este meu dia de hoje ter valido a pena? Aí tem a resposta, embrulhada em papel celofane. Escrevo-lhe uma carta sobre nada, bastando-se hoje a
minha felicidade com o simples existir: o meu e o seu e o nosso existir. Chateia-me
(chateia até que é uma palavra que chateia, pois não é?), seja, não me agrada
muito, isso sim, neste dia entre os dias, que esteja tristonho e que não lhe
apeteça escrever: falta de mar e de brisa e de musa e de beijo da fada e do
sussurro físico-táctil da sua musa. Não negue e deixe de ser dado a queixumes. Admitir essa falta dá-lhe grandeza. Oh
vida, estou a ficar tão cansada que os meus olhos começam a querer fechar-se, o meu corpo perfeito enrosca-se (e desenrosca-se) como um novelo (facilidade a dele com as suaves curvas que Deus lhe deu) e as minhas mãos repousam
entrelaçadas à espera enquanto as narinas se aformigam de ar, vai ser tiro e queca (céus, perdi o d, já o encontrei), vai ser tiro e
queda. Adiante. Mas não, não podia adormecer (em mim, céus, até o sono se aninha, vida) sem lhe enviar esta carta prometida, a
adornar uma imagem de uma pintura linda e sugestiva. Se a Teresa se
inspirou em mim quando a rabiscou em grafite aguarelado? Então não! Tenho aqui um bilhetinho (deixa ver) que diz: adoro-te e só
porque existes o dia valeu a pena (Michio, sempre o mesmo, não te enxergas nem um bocadinho, mas gosto!)... Voy, digo, vou adormecer
já-já.
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