Senti-me Peter Pan, verdade: mas já a crescer...


Eu, meu caro, existo e não existo, sou assim que se há-de fazer, existo porque sei que existo e não existo porque imagino que apenas existo na sua cabeça de Peter Pan. Charadas em madrugada de chuva-fria, retorqui à única fada que sabe que é única, era só o que me faltava para alisar as pregas do meu estômago desalmado. Tem um estômago desalmado, interrompeu-me, por acaso o estômago tem alma, o quê, ui, como? Céus, Senhor, certezas minhas, acudam, às armas (o espanto dela era genuíno)! Desde, desde quando um estômago tem alma? Alô Descartes, cuidado Damásio, atenção Searle! Não se arme em guicha, pedi-lhe, não se arme "eu sei tudo e mais alguma coisa e ainda mais", pare de rapinar a minha manta de lã merina (a manta é minha), que mania a sua, e explique-me o que é lá isso de não existir porque existe na minha cabeça de Peter Pan; cabeça de Peter Pan? Enroscou-se, disfarçadamente, na minha manta de lã (ela não tem emenda, que sina!), e disse fingindo arrelia: ainda tenho a cabeça num poema seu que ontem li; tudo bem, fique lá com uma ponta pequena da minha manta  - a manta não é dela, raios me partam se a manta não é minha! - , mas se nunca ouviu falar no "País do Nunca Jamais", um conto infantil do escritor escocês James Barrie do início do século XX (no cinema: Neverland); e se nunca passou os olhos pelo livro de 1983 (demore-se na capa que lhe envio, talvez ela ilumine alguns dos seus neurónios friorentos) do psicólogo Dan Kiley: como posso eu explicar-lhe que sofre do chamado síndrome de "Peter Pan"? A minha vida, ripostei intempestivamente, é um misto de entropias poéticas (e de arrobas de devaneios forjados) sem ter a noção da realidade, é isso? Nem mais, meu caro, concordou, bingo, nunca mais cresce e a sua habitual egolatria não me agrada nadica de nada; eu existo mesmo, estou mesmo aqui consigo e linda e inteirinha e única, rematou em palavras ternurinhas, coceguentas. Olhei-a deveras atrapalhado, senti o seu cheiro e os olhos grandes a faiscar, abracei-a, puxei-a para perto de mim e, parafraseando o imortal Sinatra, sussurrei ao de leve: "you make me feel so young". Sabe, perguntou-me como quem confidencia, sabe que o Frank Sinatra (que este ano faria cem anos de vida) habitava as canções porque vivia com as letras? E, meu caro, sim, também ele tinha algo de Peter Pan, céus, vida, deuses! Assim ela me fez crer na existência de bosques encantados onde as flores falam aos pássaros. Senti-me Peter Pan, verdade: mas já a crescer...

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