Tinha este texto para escrever, agora já não penso mais nele

O dia correu ligeiro, ensolarado e quente (ainda restos de um São Martinho - no dia de São Martinho vai à adega e prova o vinho - lá diz o adágio popular). Agora, a afagar o teclado do computador, recordo-me de como foi um dia de nunca mais esquecer, gente bem disposta, nada de lingrinhas e nem tonéis obesos por perto; pouco a pouco (pois sim), sinto subir o desejo de confidenciar sentimentos desvelados e de revelar a fome entontecida e à solta (que fome dourada!); invade-me uma sarabanda de pensamentos (raio de vida, tanta e quanta e basta é inteligência a dela, faz-me sentir, faz-me pensar, ela é mesmo mata-borrão, guarda tudo o que vê, ouve e sente e até o dom do silêncio tem). Decido-me eu também por um prudente silêncio, esquivo-me, encasulo-me, enquisto-me, não vou escrever nada (não sou capaz, falta-me a inspiração): nem o sobre o vê (e suaves acessórios-prata) do vestido listado a realçar o encanto das formas-pêra e nem sobre os bonitos sapatos pretos (e a mala-folha discreta) da moda e nem sobre o casaco vermelho felpudo. Calo (decididamente) a vontade de contar tudo o que me fascinou (não minto e não exagero e nem invento): desde a elegância do corte de cabelo às finíssimas boas maneiras, de um hã-hã divertido até a um imaginado futuro poema dadaísta (que seja capaz de explicar (disse ela) a actual situação social de absurdos e paradoxos), desde um chá de limão e camomila ao bolo-reizinho esquartejado. Guardo (ainda) na minha memória o instante único do dia, um dia de felicidade rendida à inspiração: "ui (céus), meu caro, está a melhorar, agora já toma a iniciativa, quem diria, está a fazer progressos e eu gosto; quando me põe à prova assim nos caminhos do meu corpo, me ponho prova a mim e eu gosto". Acresce que devo registar que há quem saiba chamar com os olhos-faróis, sorrir com os lábios-finos, especular com as narinas-investigadoras, fazer gestos com as palavras-sorrisos. Contaram-me (ou li algures), não me recordo, que o corpo também é uma arma. Ela sabe muito bem disso. E, tanto assim é que, em momentos especiais, faz pontaria, olha pela mira telescópica e puxa o gatilho sem dó nem piedade, vendendo sedução a rodos, cuidado com ela... Mãos perdidas no teclado, adormeci de cansado. Sei e sinto que antes cochilei uns minutinhos poéticos e sonhei com um açafate de frutas exóticas para lhe oferecer amanhã passado. Sei, claro que sei, sei pois, sei ainda que o não pareça. Seja. Tinha este texto para escrever, agora já não penso mais nele.

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