Espelho de água: sonho ou despertar?


(Mensagem recebida)
Oiça, meu caro, oiça com ouvidos de ouvir e leia com olhos de ver e ler. Ontem tive um dia maneirinho; pus de lado que a democracia anda pelas ruas da amargura e esqueci que quem critica corre os riscos costumeiros: gostei. Houve até um maduro (ui, as coisas que eu sinto) que me cumprimentou com um destemido “linda menina fru-fru”. Sorri-lhe (é conforme a minha natureza). Ele não tirava os olhos de mim e nem das minhas novas botas azuis; parecia genuinamente pascácio, embora de aparência cuidada e com jeito de cortesia e ardilhando um suave tom na fala. Adiante. Do preguiçoso dia inteiro, nem lhe digo e nem lhe conto e tudo o que eu escreva fica aquém. Almoço: perfeito, da açorda às uvas foi um ver se te avias, tudo nos trinques e mais e até os desenhos rabiscados na toalha tive que completar. Tarde: distinta e elegante, cultura e natureza (vasculhei a pé um jardim da cidade); dei de caras com a arquitectura e a saúde de mãos dadas mas sempre (que vida a minha!) com o meu novo caderninho de rabiscos a fazer-me fernicoques e armado de lápis azul afiado. Fim do dia: um espanto o meu fim de dia; sou perfeitinha, torneada, única, de beleza oriental como as imagens dos dois postais que me ofereceram (a minha beleza é o meu tendão de Aquiles, céus, deuses). Mais pormenores? Ora essa! Não lhe parece que é querer saber demais? Não seja cusco, contenha-se, mas saiba que mediania de sentimentos não é para mim. Se me convidar para um dia de passeio rumo a um espelho de água ensolarado, deixo-lhe um desafio. Seja ele. Vamos (nós os dois) passear, esquecer quem somos, vamos imaginar o impensável, sonhar e concretizar e amar a dois, olhos nos olhos. Sem regras e sem cláusulas, num anseio de união querida. Sussurrando palavras de carinho e depuradas de enfeites, livres de medos, palavras nossas, só nossas, insensíveis ao mundo que nos rodeia. Para tal, activaremos a linguagem das mãos. E com os nossos dedos (pesquisadores, entrelaçados, andarilhos perdidos) libertaremos (devagarinho) desejos reprimidos, loucuras, desvarios e outras (e outras) voltas mais, dando forma e brilho ao que nos une e chegando a vias de facto. Se este meu desafio tem a ver com o que me aconteceu no dia de ontem? Quer mesmo saber? Claro que sim, tem mesmo a ver com que aconteceu no fim do meu excelente dia de ontem. E mais não escrevo: o sol de domingo já me espera e eu já estou no ir. Franja minha, lá me atrasei outra vez, estou a sonhar ou despertei?

(Nova mensagem recebida)
Acabei de reler, meu caro, a mensagem que hoje lhe enviei. Gostou? Que me diz? Até a mim me surpreendo, Santo Deus, Senhor! Como consigo eu escrever tão maravilhosamente e logo pela madrugada? Estou ta tão fru fru: gosto, gosto, gosto. Sou assim, que se há-de fazer!

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