Folhagem de sono, desbaratinada*


Eram quatro horas e treze (treze, porquê treze?) minutos. Em ponto. Acordei, assarapantado, a pensar em Kafka; e com vontade de rascunhar uma ideia. Não propriamente rascunhar uma ideia, antes escrever umas frases, não propriamente umas frases, mas desenhar (rabiscar) uma estrutura de frase-poeminha, desenhar a sua forma, assim: morfologicamente pobre mas com adjectivos e substantivos, as vírgulas exactas, as pausas exactas, a cadência certa, uma frase-poeminha para ser lida em voz alta. De manhã, quando acordei, li e não gostei. Pareceram-me frases ultrapassadas, antiquadas, aborrecidas, já não se escreve assim. Dizem por aí que a forma pouco interessa, que a teoria das formas é coisa antiga, é coisa de Platão. Escreve-se tão pobremente (tão desconsoladamente)! Não se cuida da elegância e da beleza e do ritmo das frases. Confesso ainda que há palavras que, de tão feias, nunca (birrento quanto baste) utilizarei, nunca; por exemplo, javardice e politiquice, mesquinhice e palermice, parolice e quejandos. Posso não ter nada a dizer (é o caso) mas prefiro escrever de forma a embalar quem me lê, sem estórias da carochinha ou piadas inocentes, óbvio. Mais. Tenho a certeza de que a música de um texto é importante. Qual foi a frase-poeminha que escrevi? Querem mesmo saber? Escrevo, não escrevo, escrevo. Ela aí está:
- “A vida, chamemos-lhe assim, foi sempre a tua música mas também a tua ferida. Não encostes a face à melancolia, liga-te à música do rouxinol e da cotovia... O teu corpo, a tua beleza conseguida, é o lugar da furtiva luz despida.

*Desbaratinada: "é assim como uma barata tonta sem telemóvel".

Comentários

Mensagens populares