Confiança para navegar e para viver

Não aguento desaforos, meu caro! Sei que é madrugada de domingo, sei que o seu estômago está carente de medicamento protector, sei que preciso de surripiar uma pontinha do seu lençol de linho velho, sei que quero aninhar-me em novelo. Que mais linda ainda fica, com ar zangado e dedo hipatiano em riste, a única fada que pensa bem e depressa, desabafei comigo meio ensonado... Não aguenta desaforos, perguntei-lhe, o que é que eu fiz desta vez? O que não fez, ripostou de imediato, o que não fez, isso sim, pergunte. Seja então, o que é que eu não fiz desta vez? Aninhou-se, disse adiante, e eu senti os seus olhos grandes-bugalhos a vasculhar-me o pensamento. Não aguento desaforos políticos, insistiu. Oiça-me bem e com atenção, continuou, ia-me perdendo na iiiiiiiiiiiimensa vacuidade do programa eleitoral da coligação psd/cds (o programa faz-me lembrar, meu caro, aquele emaranhado de páginas a que, pomposamente, chamaram de "Reforma do Estado", e que não deu em nada, foi logo esquecido depois de apresentado, franja minha, que sina!); ia-me perdendo, mas não me perdi, sabe, meu caro, que o diabo mora nos pormenores, pois não sabe? Não é possível, enfureci-me, acha bem que, nesta hora da manhã, me fale de política quando eu só a sinto a si, eu quero lá saber da política: mas que é lá isso de o diabo morar nos pormenores? Sorriu com talhadas de sorriso que só eu conheço pois adivinhou o que eu estava a pensar (...) quando me referi aos pormenores, mas esclareceu que havia dois pormenores naquele imenso programa eleitoral, pasmado de palavras enroladas (de medidas mais do mesmo e sem custos identificados, que zézinhos, Jesus, Maria, trauteou ela)...; pormenores ideológicos que eram preocupantes; o primeiro, a ideia do plafonamento das pensões que, à socapa e de sorrelfa, ataca um dos pilares da protecção social, o sistema público de pensões, sistema onde as pensões actuais são pagas com as contribuições dos actuais trabalhadores; o segundo, a introdução do princípio da liberdade de escolha na educação e na saúde… Tentava eu dizer-lhe que, sendo aqueles dois pormenores (como ela lhe chamou) tão importantes, seria de todo o interesse que fossem discutidos na praça pública, ficariam claras as opções ideológicas dos partidos da coligação, assim: (1) a partir de um determinado salário um cidadão pode optar por uma pensão do estado ou uma pensão de um fundo privado e (2) o Estado financia a saúde e o ensino públicos ou privados consoante a escolha dos cidadãos… Ora aí está, eis a razão pela qual eu não aguento desaforos, interrompeu-me, aqueles maduros escondem em palavras pardas e balofas as suas opções ideológicas, não aguento desaforos, Deus me livre e guarde, passo-me dos carretos, Hipátia fui e sou ainda. Então, perguntei com vontade de saber, o que é que propõe? Já propus, disparou, já propus, ora essa, homessa, ora essa; propus que aqueles dois pormenores ideológicos fossem discutidos por todos partidos que querem ser governo; pormenores ideológicos discutidos, cara a cara e com tino e com tento na língua: sempre se ficaria a saber quem é quem, o que pensa, o que quer (e como e com quê) fazer...; ao que vai e vem...: é preciso ter confiança, confiança, confiança, navegar é preciso... Mal que lhe pergunte, meu caro, ciciou com as palavras à proa de um sorrisinho, o que é que também lhe sugere (ui, ui, ui, ó céus, ó saber de mim) a expressão "ao que vai e vem"? "Aprochegue-se", descontraia-se, venha daí e confie em mim, eu sou de muita confiança, naveguemos, meu caro, naveguemos no arco da madrugada que se esconde, e naveguemos à bolina e dos preliminares ao clímax, sem medos mas com cuidados acrescidos, pode relampejar de quando em vez: navegar e viver, sim, também é preciso... Pensei comigo e de mim para mim e de imediato e mui feliz: há palavras que nos beijam quando a noite perde o rosto!

Adenda (mensagem recebida)
Andei, meu caro, de um lado para o outro dentro deste seu textinho, deliciando-me, aqui e acolá, com os sentidos perdidos; perdidos é como quem diz, eles estão lá, ou sou eu que os lá ponho, Santo Deus! Tanto lá estão, tanto eu os lá ponho, quanto, em momentos especiais, eu consinto que mergulhe os seus olhos nos meus. Adiante... Deixe que lhe recorde a existência de um léxico mental ou de uma forma de representação mental das palavras. Seja. O excelente António Damásio confirmou (depois de vários estudos) não só a existência desse léxico mental, mas também nos deu conta da sua organização de acordo com três níveis com implicação em regiões cerebrais diferentes. Três níveis, assim: um nível conceptual, que contém as informações semânticas; um nível lexical, que compreende as próprias palavras; um nível fonológico, que corresponde ao som das palavras. Ora acontece, diz ele, que enquanto o nível lexical parece implicar apenas o hemisfério esquerdo do cérebro, a rede semântica apela para os dois hemisférios... Nem lhe digo e nem lhe conto quanto gosto da imagem e da sua confiança em mim, adorei o final: "há palavras que nos beijam quando a noite perde o rosto"..., e quanto ao meu dedo em riste, nada, adiante... Sou assim, que se há-de fazer, sou hipatiana de gema, sou esmeralda!

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