A tua/minha carta de domingo
Almoço, com o mar à
vista, sozinho... Pedi um sargo grelhado em brasas de azinho velho e escolhi uma salada com tomate, com cebola, com rúcula
e com cenoura raspada às tirinhas (quanto tanto me falta uma salada de morujas, avinagrada!). O sargo é um sargo do mar
(palavra de pescador) e foi pescado à linha, hoje, manhã cedinho. Bebo, agora, num copo alto
(elegante) um vinho branco (planalto): o
vinho branco planalto (muito fresco) vai sempre muito bem com a água e com as saudades de ti a rondarem afoitas o sentimento de ti em mim.
Folheio uma revista de ciência enquanto espero, guardo na mochila uns raios de sol para o fim do dia, e demoro-me num curioso texto do Jorge Wagensberg: “O curto-circuito de Prometeu”. Na
origem do curto-circuito de Prometeu (o que queimou os dedos no lume que roubou aos deuses) está o nascimento da ovelha dolly, assim percebi. Dolly é o exemplo,
diz o Jorge Wagensberg, duma invenção (recente e radical) da matéria viva, invenção que é o símbolo
da terceira idade (clonar) da humanidade: uma invenção que surgiu do curto-circuito entre a informação genética e a informação cultural. A primeira idade (formar) é a idade da pedra: através de uma ferramenta de pedra, dar forma à matéria; e a segunda idade (transformar) é a idade do bronze: transformar a matéria para lhe dar um outra forma nova. Ponho de lado a revista de ciência (quero lá saber da ciência), quero é pensar em ti (ainda que o ciúme me continue a atacar com todo o seu arsenal de armas secretas e tácticas de surpresa), aconchego-me com a alma decidida, e olho o horizonte de
água: o meu coração, cheio de saudades e num tropel de recordações, enche-se de alegria (as saudades são uma forma muito
bela de amor), e faz uma pausa para te pensar, para te admirar e para te cortejar: tão linda e tão sábia e tão amorosa e tão, e tão tudo (mais que tudo) tu és, até o sorriso te adoça a expressão: estavas ali comigo, única e destilando suave e serena sensualidade ... E ei-lo, impante e indiscreto, o sargo grelhado, ei-lo que chega na procissão da salada; e (oh surpresa boa e gratuita), em trinado solto, ao
longe e baixinho, oiço em jeito de escutar a guitarra do Carlos Paredes. Saboreei, no fim do almoço, um café curto com um pastel natinha acanelado: assim almocei, com o mar à vista, acompanhado por ti, sozinho... Vagueei, depois e com algum tempo, pelas dunas adentro e com a areia fina e húmida a morder-me os calcanhares, molhei os pés na espuma das ondas preguiçosas e salgadas, imaginei a tragédia dos emigrantes ilegais à deriva no mar ou a tentarem chegar a terra e à procura de uma vida humana, irritei-me quando me lembrei das trambiquices dos políticos, e ainda percebi, no voo (ora picado ora à bolina) de duas gaivotas, que talvez o amor seja o privilégio dos seres divinamente privados de o raciocinarem. Já o sol avermelhado se afogava no horizonte e eu não conseguia acabar de te escrever a carta de sábado; vou ver se, com vagar e com tempo e com vontade, a consigo terminar até ao fim do dia: vou chamar-lhe, creio que concordarás comigo, a tua/minha carta de domingo.
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