A via graça voltou

Que história é essa, meu caro, de eu atrapalhar o tempo? A noite está tão quente que até me custava fazer alguma coisa mas decidi-me: tapete voador alinhado com o vento e aqui estou eu. Antes de vir ter consigo, estive estirada no meu sofá da sala, janela em frente aberta para o terraço onde não corria uma brisa e a luz apagada para não ser invadida por melgas indesejadas e reli o seu texto, pois claro que reli... Olhei demoradamente o ar decidido da única fada que sempre acorda na véspera para a equação/solução dos problemas (então ela não sabe que atrapalha o tempo?); vinha de cabelo apanhado como eu tanto gosto, pescoço alto e olhos grandes apaixonados, mulher-deusa, deusa-mulher da minha vida (que os meus olhos lambuzam com atenção). Perguntei: sabia que também eu estava na minha sala e sem conseguir escrever nada? E sente a aflita alegria que a sua presença me provoca? Então não, meu caro, então não, trauteou, gosto da sua conversa solta, do olhar e do riso, gosto do taco a taco presencial, temos sempre conversa, eu sou a sua musa, para escrever precisa de mim e das minhas ideias. A propósito, ciciou confidente, achei delicioso e muito sedutor aquele pormenor da penugem do meu antebraço a roçar a sua pele; e agora é penugem loura e antebraço moreno, por causa do sol e do mar e, claro que sim, o vestido estava por ali a mais, claro que sim. Escusado será dizer que a parte melhor do meu sofá já era dela e até a minha manta de lã merina se enroscou a proteger o estuar das curvas dela (curvas suaves de ménada adormecida) e rindo divertida com a minha atrapalhação: eu afogueado e uma manta a rir, pode lá ser, ando obcecado pelos problemas da existência e ponho-me em guarda contra tudo o que ameace a minha liberdade, ruminei, quem sabe eu lhe tenha dito que ela atrapalha o tempo por causa a interrogação pelo ser de mim (Heidegger, socorro, acode-me). Aproximou-se, linda, enovelada e delicada e frágil, e eu senti, na parte do meu corpo que o desejo enfunou, o abrir da flor da sensualidade dela. O som da música do Rodrigo Leão deu o mote, o tempo (por causa dela e também de mim) atrapalhou-se mais uma vez, e os nossos corpos entregaram-se à carícia cálida da noite. Embriago-me de lhe pertencer, assumo.