Na equação de projectos pedagógicos para o ensino básico, a inversão da relação entre viver e aprender está no ar
Acordei, meu caro, e,
quando acordei, ainda tive tempo de ouvir um desabafo, no final de uma
caminhada madrugadora de sonhos pedagógicos, um desabafo de um meu sonho pedagógico: estava cansadito, há tempos que anda
baralhado, não atina com as decisões do Crato, e (acudam, às armas) teve uma
discussão de criar bicho com o Santana Castilho. Não é justo, refilei, não
é justo que uma fada prendada, só porque acordou madrugada alta, entenda que
tem o direito de invadir a minha cama, rapinar o meu novo lençol de linho velho,
enroscar-se em jeito-maneira como os gatos sabem fazer: sabe bem o que acontece comigo, aqueço demasiado e, por isso,
enfureci-me, diverte-se, bem vejo o seu sorriso sorrateiro. Precisa de um banho
de água fria, vejo que precisa de um banho de água fria, trauteou, acrescentado:
dizem que sim, que faz bem, que um banho
frio faz encolher inchaços; tudo bem, eu espero aqui por si, não se esqueça de
voltar só meio enxugado, gosto, gosto. Levantei-me, não corei de vergonha
(mas tapei-me), e dispus-me a ir tomar banho, perguntando: afinal qual foi o desabafo do seu sonho pedagógico, sempre posso pensar
nesse desabafo, enquanto penso debaixo do chuveiro. Boa ideia, meu caro, disparou,
aquele meu sonho pedagógico não sabe se o Crato e o Santana Castilho têm ideia do
que seja o ensino básico. Poupe-me, reagi, claro que eles (um e o outro) têm
ideia, ainda que discordem dos métodos utilizados para o tornar o ensino básico
universal e acessível a todas as crianças; o seu sonho pedagógico estava mesmo
cansado. Talvez, alvitrei, ele já tenha descoberto que estamos no fim da
escolástica europeia, que está acabar a crença na educação universal como fonte
de promessas, que é preciso questionar a relação entre os saberes e a
democracia na escola post-moderna: é
preciso questionar a fé pedagógica e as certezas políticas. Ia-me
estatelando, ela levantou-se, nua e linda (tão linda) e decidida: vou tomar banho consigo, sempre continuamos
a conversa, aquecemos e arrefecemos, uma e outra vez. Por quem é, pedi-lhe,
por quem é, seja razoável, diga-me primeiro o que é para si o ensino básico.
Oh, oh, meu caro, apenas estou a dar sequência (imediata e prática) à sua
tirada filosófica “é preciso questionar a fé pedagógica e as certezas políticas”,
ou seja: numa tirada à Thomas Kuhn (o tal dos
paradigmas) digo-lhe que na equação de projectos pedagógicos para o ensino
básico, a inversão da relação entre viver e aprender está no ar… “Aprender e Viver” e não “Viver e Aprender”, é isso? Arrisquei. Nem
mais, meu caro, cantarolou, venha daí aprender a tomar banho comigo e a sua
vida nunca mais será a mesma... Recordo-me de ainda lhe ter conseguido dizer que, se se
alterasse a equação na organização dos projectos pedagógicos para o ensino
básico, as posições dos especialistas em educação teriam de ser diferentes, radicalmente
diferentes. Radicalmente diferentes, ciciou,
é como quem diz: vamos os dois tomar banho, vamos lá os dois aprender e viver, e das
posições falamos depois... Das posições falamos depois? Quais posições?!
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