Tudo o que possa imaginar é real


Sim acontece-me, meu caro, acontece-me bastas vezes... Que ar tão fulo, o ar de uma fada tão linda (que rosto límpido!), armada ao pingarelho e com um desenho tão sugestivo na perfeita mão direita, pensei comigo, o que se terá passado? Não me diga, meu caro, que não sabe o que se passou, respondeu ela aos meus pensamentos, desfranjando-se ao de leve; leia esta notícia devagarinho, e perceberá porque é que lhe mostro este rabisco de peixe que o Pablo me ofereceu... Li, já li, já tinha lido, retorqui, já tinha lido, e que quer lhe diga, a verdade é que até me surpreendo pouco, eu a maioria dos portugueses, mas mal que lhe pergunte, o que é que já lhe aconteceu bastas vezes?!... Pois sim, invectivou-me, acontece-me bastas vezes lembrar-me dos peixes e lembro-me sempre que algo vai mal...; e essa é que é a sua burrice, insistiu, a sua burrice é não se enfurecer como eu ou como o Padre António Vieira... Como o Padre António Vieira, exclamei surpreendido, pode lá ser! Ai não pode, não pode, agastou-se, então pense nesta pequena parte deste sermão aos peixes:
- "Vós, diz Cristo, Senhor nosso, falando com os pregadores, sois o sal da terra: e chama-lhes sal da terra, porque quer que façam na terra o que faz o sal. O efeito do sal é impedir a corrupção; mas quando a terra se vê tão corrupta como está a nossa, havendo tantos nela que têm ofício de sal, qual será, ou qual pode ser a causa desta corrupção? Ou é porque o sal não salga, ou porque a terra se não deixa salgar. Ou é porque o sal não salga, e os pregadores não pregam a verdadeira doutrina; ou porque a terra se não deixa salgar e os ouvintes, sendo verdadeira a doutrina que lhes dão, a não querem receber. Ou é porque o sal não salga, e os pregadores dizem uma cousa e fazem outra; ou porque a terra se não deixa salgar, e os ouvintes querem antes imitar o que eles fazem, que fazer o que dizem. Ou é porque o sal não salga, e os pregadores se pregam a si e não a Cristo; ou porque a terra se não deixa salgar, e os ouvintes, em vez de servir a Cristo, servem a seus apetites. Não é tudo isto verdade? Ainda mal! Suposto, pois, que ou o sal não salgue ou a terra se não deixe salgar; que se há-de fazer a este sal e que se há-de fazer a esta terra? O que se há-de fazer ao sal que não salga..."
Ainda eu nem tempo tinha tido para respirar, e já ela se fazia ouvir: o efeito do sal é impedir a corrupção, meu caro, é, não é, pois é? Os seus olhos grandes bogalhados e o seu rosto fino de mulher linda, esbandalharam-me o pensamento, mas ainda consegui gaguejar: o que se há-de fazer ao sal que não salga, sabe? Oh, oh, meu caro, suspirou, gosto que que tenha feito esta última pergunta, gosto, gosto, gosto, é uma pergunta inteligente, e quando assim acontece, até me sinto pescada, esbelta, esguia, olhuda, cantora, a atirar para o jeito modelo inconfundível de uma sereia atraente, suave e tímida...: em verdade lhe digo que tudo o que possa imaginar é real!

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