Como é que é?! O cobertor e a manta são meus, meus!


Nem lhe digo e nem lhe conto, então não é que ontem me ia passando dos carretos?! Então não é que uns maduros desataram a perorar que o regime democrático, neste seu país (que eu escolhi para viver), estava em causa? Como é que o regime democrático poderia estar em causa, se a democracia é darwiniana? Homessa! E já agora, recluso n.º 44, pode lá ser, vida a minha!... Percebi o ar sorrateiro como, à medida que falava, a única fada que sempre acorda na véspera, se ia enfiando curvilínea na minha cama, já a noite tinha adormecido... Mau, refilei, mau, mau, além de ter de aturar a azia da sua zanga com esses maduros, ainda tenho que repartir consigo a minha manta de lã merina branca? Era só o que agora me faltava...; mas a democracia é darwiniana?! Ai não sabia, sussurrou enquanto ajeitava o cabelo e desnudava o pescoço (tão linda que até a minha manta me abandonou de vez), não sabia, mas eu explico, seja, algo é darwiniano quando é o resultado da selecção natural, e a selecção natural consiste em duas coisas: uma, requer que nos seres vivos exista uma variabilidade, que os membros de uma espécie não sejam todos idênticos; outra, que as características particulares de cada indivíduo possam ser transmitidas hereditariamente aos seus descendentes. Tudo bem, concordei, o "mecanismo" da selecção natural foi o que Darwin encontrou de melhor, para explicar porque é que na natureza algumas espécies se extinguem e outras aparecem novas..., não foi? Faz bem, meu caro, trauteou, faz bem em se levantar (cubra-se que o frio faz minguar os pendurados) para procurar um cobertor de papa..., quem sabe se esse seu fofo cobertor de lã churra e a minha manta de lã merina se enamoram; voltando à questão, insistiu, há um outro, um tal de Dawkins, que afirmou que os memes (um conjunto de ideias-mistura de memória e genes) também se comportam de forma darwiniana: competem entre si e estão expostas a um processo de selecção, evoluem... Bem, interrompi, bem pensado, mas onde é que entra a democracia? E se democracia é ficar com a minha manta e obrigar-me, com este frio, a procurar um cobertor, vou ali e já volto... Acalme-se, ciciou, acalme-se e acalme o seu cobertor que da minha manta cuido eu, e oiça-me com atenção: um dos sistemas mais importantes da nossa cultura, a ciência, funciona de maneira darwiniana; criam-se hipóteses, as hipóteses são discutidas, são confrontadas com a evidência experimental, são debatidas e refutadas, e se estão bem adaptadas ao meio sobrevivem: numa palavra, os memes científicos evoluem de forma análoga à forma como evoluem os seres vivos. Entendi, ripostei agastado, entendi que está a fazer tempo, vá directa ao tema, a democracia é darwiniana... Ei, ei, suspirou, eu tenho lá culpa se o seu cobertor quer a minha manta e me obriga a "um chega pra lá permanente", que raio de nome o dele, cobertor de papa (papa de papa, ou papa de papar?), tenho lá eu pinga de culpa...; falei-lhe, meu caro, nos memes científicos para lhe explicar que muitas das características da ciência também são os grandes requisitos para a democracia: a livre discussão das ideias, o germinar de várias propostas para atacar os problemas da sociedade, o convencimento dos outros através do exercício da razão... Está a dizer-me, arrisquei, que numa democracia real as melhores ideias tendem a sobreviver..., e, sendo assim, através da sua efectividade, tendem a convencer mais pessoas que votarão nelas; está a dizer-me que os memes democráticos se comportam de forma darwiniana...; acho que entendi, mas qual o seu propósito com esta (curiosa) conversa de hoje? Hoje, respondeu, hoje é um dia importante para a sobrevivência do regime democrático em Portugal, só por isso esta conversa se justifica: os regimes políticos sempre acabam minados por dentro, mas o regime democrático sempre vai sobreviver, lhe garanto, palavra de Hipátia do século XXI... Por favor, pediu de ar gaiteiro (que bem falam os seus olhos grandes), por favor, peça ao seu cobertor que deixe a minha manta em paz, ou não respondo por mim, e vingo-me em si, ai vingo, vingo, à séria!... O quê?! Como é que é?! O cobertor e a manta são meus, meus!

Adenda (mensagem recebida)
Está tudo bem? Uh, que noite agitada, não?! Aquela manta de lã e o cobertor de papa (seja lá o que isso for, sei muito bem o que é, meu caro) estiveram em longos envolvimentos, ai estiveram, estiveram... Acho que têm uma relação adorável, terna e quente. Que mal tem isso? Mas acho muito mal o meu caro ser tão sovina em relação às cobertas, é natural que a metade maior da manta seja minha e que partilhe uma ponta do seu cobertor para compor a cobertura. Então, não sou eu a mais friorenta? Deve-se chegar a manta consoante o pêlo, é ou não é? Isso é que é verdadeiramente democrático. Dá-se mais a quem merece mais, tenho dito, em palavras de fada… Hoje é dia de grande consternação face aos noticiários e às novidades sobre alguns protagonistas da nossa democracia. É um cenário tão triste, o cenário em que, actualmente, vivemos. E na rua, nos cafés e no trabalho, o povo manifesta-se: ou vocifera "é um canalha, é bem feito!" ou, então, reserva-se a uma resignada indiferença. Na democracia convivem as duas facções, a revoltosa e a conformada. À conta das duas, governam (e governam-se) os incompetentes e os corruptos. Sina a nossa, desgraçado regime, todo esfrangalhado! Atchim! Olhe, estou constipada, vida a minha... Vou tomar um comprimido. Haja algo que tenha cura. Um dia muito bom e não desespere com a falta de sol, eu sou o sol (e a lua) da sua vida!

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