Socorro, quero acordar!

Eu bem que lhe tinha dito, eu bem lhe disse que o mundo dos meus sonhos é multiverso... Não, por favor, pedi, em jeito encarecido, à única fada para quem o tempo são relógios derretidos de Dali, não me acorde tão cedo, preciso de dormir. Precisa de dormir mas também precisa de me ouvir, suspirou de franja alevantada; e assim sendo, faça que dorme que eu falo consigo, a vida é binómio, meu caro, e eu sou binómios vivos, testemos: vou atirar-lhe uns pozinhos de sinestesia (aí estão..), agora olhe para mim e diga o que vê, e diga o que sente, diga, vá diga... Olhei-a com olhos de olhar e: vejo-a "linda-esbelta" e sinto-a "afeição-cognição" ao mesmo tempo, ouvi-me dizer e já sem qualquer pingo de vontade de dormir... Vamos então ao que interessa, sussurrou ela, vamos ao que interessa..., no meu sonho, de ontem, visitei a conferência dos pássaros, e (oh céus, oh vida gratuita) cheguei à conclusão que esta minha linda franja já foi franja de pássaro-poupa, em tempos idos... Ela passou-se, pensei comigo, enquanto lhe pedia que se explicasse mais e melhor... Eu sei, ripostou ao meu pensamento, eu sei que é um incrédulo e, por isso, e só por isso, lhe vou transcrever uma pitada do meu discurso na conferência dos pássaros (p.5) no tempo em que eu era poupa linda-esbelta-elegante-colorida: "Queridos pássaros, sou a que está empenhada na guerra divina, a mensageira do mundo invisível. Tenho o conhecimento de Deus e dos segredos da criação. Quando alguém carrega no bico como eu, o nome de Deus, Bismillah, há-de ter, por força, conhecimento de muitas coisas ocultas. Meus dias, contudo, passo-os na intranquilidade, e não me ocupo de pessoa alguma pois estou inteiramente ocupada com o amor ao rei. Sou capaz de encontrar água por instinto e conheço muitos outros segredos...". Estou a sonhar, gritei comigo para acordar... Ela, feliz (ou fuliz, já nem sei bem...), riu-se a bandeiras despregadas e segredou-me (ai os seus lábios-seda no meu ouvido): a conferência dos pássaros é um poema épico que relata a viagem de dezenas de pássaros em busca de um rei e na qual têm que atravessar vários vales sempre que um mais difícil que os outros...; fui eu, meu caro, que soprei ao Peter Brook que se inspirasse na viagem dos pássaros para desenvolver o tema da sinestesia no seu "The Valley of Astonishment"... Oh pá, belisquei-me, até que viver no multiverso pode ser uma experiência fascinante e até os meus neurónios batem palmas e castanholas..., mas (ei, ei, ei, tem calma, pensa devagarinho) poupa e franja são atributos do mesmo ser e o ser é ela?! Ela mesmo?! Socorro, quero acordar!


Adenda (mensagem recebida)
Pois sim, bem me parece que não dormiu muito, já que está algo confuso o relato da nossa conversa… Mas se não dormiu, não acho justo que me culpe por isso; junto de si, sou sempre (e em qualquer circunstância) uma presença benéfica e agradável, ora essa! Adiante, que desde ontem me sinto feliz e fuliz… A conferência dos pássaros (onde eu no meu tempo de pássaro-poupa – bem que pergunte, o feminino de pássaro é pássara?! Oh, pá!) traz-me à memória um livro de capa dura em cartão e cheio de pássaros em ilustrações muito estranhas. Recorda-se? Até estou apardalada! Sim, também sou prima dos pardais, em que é que pensou?! Os pardais têm franja? Creio que não, não foi deles (mas sim da poupa) que herdei a minha franja tão expressiva (nunca pensei que uma franja, ora para o lado, ora para a frente ou para cima, tivesse tantos significados, valha-me o Deus dos pássaros!). Sabe, meu caro, que a conferência dos pássaros é de facto um poema épico, uma ode ao amor e à liberdade. É o que eu ainda continuo a pensar… Bom, tenho agora que ir bebericar (bebericar tem a ver com bico, pois não tem?) umas gotículas de café e. se tivesse trazido as asas, abanava-as de contentamento sem fazer biquinho… Como não dormiu (ou se dormiu muito pouco), meu caro, durma uma sesta (se possível) e deixe o seu inconsciente voar livre como as aves do céu. Sonhe comigo, se também for possível…; e. para que não se demore e se perca em sonhos-voos estranhos, afogueados e demasiados altos, eu vou guardar aqui comigo a parte de si que eu cá sei... Ah! Ah! Ah! Quanto eu me divirto!

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