Pasmo com a sua ousadia
Foi assim, foi mesmo
assim, meu caro, bem que eu lhe tinha dito… Eh, pá, pensei comigo, põe-te a pau, uma fada de franja solta e tão
afirmativa, quando ainda a manhã faz negaças ao sol e quando já os pássaros decidiram
acordar às bicadas, traz água no bico, ai traz, traz… Mau, mau, maria, sibilou de nariz arrebitado e narina direita
cientista, essa sua estranha forma de só utilizar expressões idiomáticas
deixa-me por vezes meio agastada e com pele de ouriço fulo; traz água no bico,
homessa, insistiu, quem é que traz
água no bico? Eu?! Eu que me reclino no silêncio da vida gratuita?! Não se
amofine, retorqui de imediato,
trata-se tão só de uma forma de dizer que percebo, com preocupação, que está
irritada com algo ou com alguém, espero que não seja comigo, oxalá, o que é que
eu terei feito desta vez! Não fez, ciciou,
não fez, esse é que o problema, ou seja, não me avisou que devo deixar de
meditar nos estranhos sonhos que ando a ter… O seu inconsciente, questionei, anda a divagar em segredos e
murmúrios e outros que tais, e não os consegue interpretar, é isso? Mas porquê
eu, porquê eu a ter de a avisar, o que é que eu sei sobre o meu inconsciente?!
Riu-se e eu desconfiei… Adiante, meu caro, sossegou-me,
adiante… Recorda-se de me ter dito: “para
poder descobrir, é preciso primeiro informar-se: olhar, ler, escutar, discutir;
ora com a mais profunda atenção, ora deixando a memória comparar e a imaginação
vagabundear”? Tem presente, meu caro, trauteou
de novo, tem presente quando, em jeito de piropo-síntese, se dirigiu a mim,
coradíssimo: “abraço-a com uma só
olhadela…; não sucessivamente no pormenor dos seus atributos, isso fica para
mais tarde, abraço-a toda inteira como uma composição musical que se completa no meu espírito…”? Ah, suspirou, e
quando teve a coragem de me confrontar (não me custa assumir, eu nesse dia
estava linda de viver, ai os meus brincos-pérola de sonho!) com um apelativo
cumprimento: “as palavras estão
totalmente ausentes do meu espírito quando penso em si”? Disse isso sim,
foi eu que disse tudo isso, e agora o reitero, assenti. Pois bem, concluiu,
não é que fiquei convencida que, quando assim me falava, estava a assistir ao
criativo trabalho próprio do seu inconsciente? Não, não é verdade, gaguejei atarantado com o riso das
pupilas dela, não é verdade, não pode ser verdade, eu não conheço o “criativo
trabalho próprio” do meu inconsciente… Não?! Não conhece?! Homessa! Meu caro, sussurrou, o seu inconsciente, o seu
inconsciente sou eu (inteirinha e de imaginação à solta) incubada em si;
entende agora porque é que já decidiu nestes dias de Outono despertar na queda
das folhas a vingança dos pássaros, porque é que a genialidade é principiar
algo no qual o futuro esteja incluído? Amochei, sem apelo nem agravo, e… O meu
inconsciente é ela?! Despertar na queda das folhas a vingança dos pássaros?! A
vingança dos pássaros? A genialidade é?... Pasmo com a sua ousadia!
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