Um texto que não estará inteiramente desactualizado...

"Um povo imbecilizado e resignado, humilde e macambúzio, fatalista e sonâmbulo, burro de carga, besta de nora, aguentando pauladas, sacos de vergonhas, feixes de misérias, sem uma rebelião, um mostrar de dentes, a energia dum coice, pois que nem já com as orelhas é capaz de sacudir as moscas; um povo em catalepsia ambulante, não se lembrando nem donde vem, nem onde está, nem para onde vai; um povo, enfim, que eu adoro, porque sofre e é bom, e guarda ainda na noite da sua inconsciência como que um lampejo misterioso da alma nacional, reflexo de astro em silêncio escuro de lagoa morta.
Uma burguesia, cívica e politicamente corrupta até à medula, não descriminando já o bem do mal, sem palavras, sem vergonha, sem carácter, havendo homens que, honrados na vida íntima, descambam na vida pública em pantomineiros e sevandijas, capazes de toda a veniaga e toda a infâmia, da mentira à falsificação, da violência ao roubo, donde provém que na política portuguesa sucedam, entre a indiferença geral, escândalos monstruosos, absolutamente inverosímeis no Limoeiro.
Um poder legislativo, esfregão de cozinha do executivo; este criado de quarto do moderador; e este, finalmente, tornado absoluto pela abdicação unânime do País.
A justiça ao arbítrio da Política, torcendo-lhe a vara ao ponto de fazer dela saca-rolhas.
Dois partidos sem ideias, sem planos, sem convicções, incapazes, vivendo ambos do mesmo utilitarismo céptico e pervertido, análogos nas palavras, idênticos nos actos, iguais um ao outro como duas metades do mesmo zero, e não se malgando e fundindo, apesar disso, pela razão que alguém deu no parlamento, de não caberem todos duma vez na mesma sala de jantar."

Guerra Junqueiro, Pátria,1896

Mensagem recebida (28/08/2014)
Acordei cedo, muito cedo, meu caro, e, de olhos grandes papudos à sombra da minha nova franja, amanheci no meu terraço de amores-perfeitos com linha de horizonte-água…; demorei-me nas abelhas que já regressaram, esperei pelo meu pardal de cantar simples e adiei o meu café matinal por uns minutos: fui ler o texto do Guerra Junqueiro. Como é possível que um texto do século XIX possa ser tão actual?! Como?! Sabe?! Claro que não sabe, mas eu digo-lhe porquê. Só pode significar isto: os portugueses não aprenderam as lições da história e da vida e não evoluíram espiritualmente. Só assim se explicam o atraso cultural e as desigualdades e o desenvolvimento que tarda… Que desassossego o meu, Santo Deus, Jesus, Maria, José! Ah, saiba que logo a seguir fui burilar os meus olhos, decidi pô-los a dardejar para si em direcção ao tempo futuro… Se ainda tomei café? Claro que sim, acompanhado de um pastel de nata tostadinho, e com as notas claras das flautas e o cantabile vibrante das harpas em música de fundo.

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