Atenção à rima, meu caro, olhe a rima!


Acordei ontem, meu caro, às sete horas e trinta e dois minutos e quarenta e quatro segundos (todos os dias encontro um quarenta e quatro, oh vida a minha!), e fui logo de caminho para o meu terraço, já com o meu caderninho preto argolado (onde me detenho no tempo e onde anoto em rabiscos tudo o que vejo e sinto com beleza) à mão de semear; precisava de escrever as palavras exactas de uma mensagem que o meu inconsciente me ditou noite adentro: “no teu sono há um rumor que não dorme, tem a sua música, o seu rigor, o seu segredo…”. Olhei surpreendido para uma fada preocupada (sentada ao fundo da minha cama), e perguntei-lhe se ela tinha uma ideia do significado de tal mensagem. Esse é o problema, meu adorado admirador do avesso da vida, esse é o meu problema, respondeu-me. Esse é o problema, esse é o seu problema, homessa?! Exclamei incomodado. Empertigou-se e disse que sabia bem que o rumor no seu sono (com música e com rigor e com segredo) tinha a ver com a sua missão no planeta terra: neste intervalo de tempo de crise social aguda, fazer as pessoas felizes em Portugal… Pois vai ter muita dificuldade em fazer felizes as pessoas em Portugal, interrompi, porque “a fina película do progresso, com a crise da classe média, está a revelar em Portugal o atraso ancestral, ignorância, boçalidade, manha e inveja social”; ninguém pode ser feliz assim, rematei. Imagine e sinta, sussurrou com voz impaciente, matute no meu incómodo, tanto agora me falta uma pitada de estrato de raiz de cúrcuma..., quanto penso que já se estão a sentir os efeitos do quarto “efe”… Quarto “efe”, quarto "efe"..., foi, foi mesmo o que disse? Questionei. Não se fez rogada… Então não é consensual, mastigou as palavras, não é consensual que no tempo do Oliveira Salazar, em Portugal, se falava do efeito embrutecedor dos três “efes” (futebol, fátima e fado)? Então, e não é que esses destravados três “efes” já estão a regressar em força (já sinto sons, ecos e melodias errantes), enriquecidos agora com um estranho quarto “efe”, o multiforme facebook, um arrevesado exemplo da sociedade da ignorância teorizada pelo Antoni Brey? Há muito tempo, retorqui, que oiço falar da existência de um outro “efe”, também do tempo do Salazar, que sempre se manteve activo (dizem que, por vezes, muito embrutecedor) e que também tem a ver com o facebook mas que pode ser algo bem mais saudável e mais prosaico… Ora essa, bem observado, disparou; esse “efe”, bem mais saudável e mais prosaico como lhe chama (o seu sorriso matreiro brincava divertido com uma respiração anelante), diz-se de um verbo que rima com poder e do qual, há três anos a esta parte em Portugal, apenas resta o particípio passado; particípio passado que, dia sim e dia não, apenas é conjugado com o verbo estar… Disse mesmo um particípio passado de um verbo que apenas é conjugado com o verbo estar, todos os dias..., dia sim e dia não..., e dia sim e dia não? Estou surpreendido, gaguejei atónito, enquanto ela, bailando ao ritmo de uma dança inglesa do século treze, trauteava: "Atenção à rima, meu caro, olhe a rima!".

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