Nem mais, exclamou e sorriu
Digo-lhe, meu caro, e
sem qualquer princípio de precaução (já ouviu falar no princípio de precaução,
pois não ouviu?) que ando assim a modos que preocupada; então não é que agora
até dei por mim a levar trabalho para casa para ver se arrumo memórias e ideias
soltas?! Vou atirar-me aos papéis e palavra que os esfanico a todos, ai esfanico, esfanico! Olálá, pensei comigo, ainda
o dia dorme e já a única fada virada para o azul da vida, se prepara para viajar no
tempo?! Não é bem isso, interpelou-me
de sabrinas brancas aos saltinhos no chão límpido do seu terraço; o que me
preocupa, isso sim, é ajustar memórias e ideias porque pretendo falar consigo e
quero estar muito disponível. Ela quer falar comigo, interpelei-me, estou feito, o que é que terei feito desta vez,
sinceramente não me recordo. Pois, suspirou,
é exactamente o contrário, o que eu pretendo é que faça muitas coisas sempre
novas e diferentes… A propósito, sabe que para fazer coisas novas e diferentes
é preciso ter memória? Já vi pela sua cara, continuou,
que precisa de uma explicação…, aí a tem: no
primeiro quartel do século XX, tive discussões de criar bicho com o meu
excelente amigo Teódulo Ribot a propósito da memória e das doenças da memória;
e, depois de muita discussão, lá conseguimos concordar numa conclusão simples
“A memória consiste em um processo de organização de graus variáveis
compreendidos entre dois limites extremos, o estado novo e o registo orgânico”.
No princípio do século XX, não será no final do século XX? Questionei. Oh vida a minha, desabafou, mas este pensa que eu nasci
ontem? Às tantas está convencido que o estudo do cérebro começou há vinte anos,
santa ignorância! Santo Deus, Jesus Maria, José... Fiz que não a ouvi, pedindo que me traduzisse um pouco
melhor a conclusão a que ela e o seu amigo tinham chegado. Não se fez rogada. Pendurou
os olhos bogalhados à proa do seu melhor sorriso, e sussurrou-me como quem conta um segredo… Aquela discussão imensa com
o Teódulo terminou no preciso momento em que ele, perdido de amores por mim (como ele me adorava...),
percebeu que eu sou o estado novo da vida sempre e em qualquer circunstância.
Não me dei por vencido..., e disparei mais ou menos ao calhas: então a(s) minha(s) memória(s) são o processo de tudo o que me aconteceu, acontece (e acontecerá) desde que se
oriente(m) por si, que é o único exemplo vivo do milenar, perene e criativo estado novo da vida… Nem mais, exclamou e sorriu.
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