Em verdade lhe digo

Consegue imaginar o que me vai na alma?! Ai não consegue não! Sabe que estou a olhar para mim própria com outro olhar em artefactos alegres?! Ai não sabe não! Tem a mais pequenina ideia que seja, de que o meu lugar não é na bancada nem de bancada?! Ai não tem não! Três perguntas admiradas, ainda a madrugada é menina; é muito, é mesmo muito para o meu cérebro de neurónios atrapalhados, pensei e nem respondi aos “ais” exclamados da única fada, que se acha no direito de só fazer o que (e quando) lhe apetece, e sempre que lhe dá na real gana. Não se fez de novas e nem de achada… Deixe-me enrolar um pouquinho na sua manta de lã merina, murmurou; sinto-me assim mais próxima de si e, acredite, é um pouco estranho e surpreendente, mas faz-me querer ser melhor. Entrei no jogo: tenho a certeza de que as suas três exclamações são resultado de um qualquer acontecimento que eu desconheço...; ou eu não conheça já a sua forma imprevisível de estar. Verdade, ripostou de imediato e feliz e de coração sentimento. Então não é que, ciciou, acabam de confirmar o que há muito eu já sabia de ginjeira?! Acabam de confirmar que um pequenino fragmento de papiro é verdadeiro; se já leu a notícia, então demore-se aqui e aqui uns minutos… Li a notícia com atenção e demorei-me (quase uma hora) a tentar perceber... Dormitei e, alguns minutos depois, abri os olhos e, perante a sua incredulidade, disse-lhe (displicentemente), que eu sempre soube que ela era judia mas que estava a ficar muito curioso com o que ela se preparava para me revelar. Não lhe vou revelar nada, meu caro, nadinha de nada, interrompeu-me, tudo está no papiro, é só tirar a conclusão certa… Passei-me e exclamei em jeito-sorriso-aberto: só falta que me diga que já foi a mulher de Jesus! É estranho e surpreendente e inimaginável, suspirou de olhos espelhados, pois não é?! Percebe agora porque lhe digo que não imagina o que me vai na alma, porque lhe garanto que não sabe que estou a olhar para mim própria com outro olhar, porque lhe afianço de que não tem ideia de que o meu lugar não é na bancada, nem de bancada? Não me diga, não me diga que o que estou a pensar, pode (mesmo) ter uma pontinha de verdade..., não acredito, não acredito mesmo, gaguejei em acordes de viola tonta... Não se arme em "gabiru", interrompeu-me... Já deixou de ser uma questão de fé, soletrou ela com dedo de Hipátia em riste, em verdade lhe digo!

Adenda
Percebi, meu caro, que ficou sem tino nem norte quando lhe pedi para não se armar em "gabiru"... Pois fique sabendo que "Gabiru" é um alter ego de Raúl Brandão; ora leia esta pequenina citação, tirada de "Húmus":
“É o Gabiru que se põe a falar sem som nem tom. Um homem absurdo. Olhos magnéticos de sapo. É uma parte do meu ser que abomino, é a única parte do meu ser que me interessa. Às vezes deita-me tinta nos nervos. Fala quando menos o espero. Chamo-o, não comparece. Se quero ser prático, gesticula dentro do casaco arripiado: - A alma! – A alma! – Singular filósofo! É capaz de desejar a morte para ver o que há lá dentro; é capaz de achar vulgares até as coisas terrenas. Ao lado da vida constrói outra vida. Sonha e os seus sonhos são sempre irrealizáveis, transformam-se-lhe nas mãos em barro informe. Toda a gente se ri – já sonha outra vez… Para ele a vida consiste, encolhido e transido, em embeber-se em sonho, em atascar-se em sonho. Meses inteiros, ninguém lhe arranca palavra e, dias inteiros, ouço-o monologar no fundo de mim próprio. Ignora todas as realidades práticas. Na árvore vê a alma da árvore, na pedra a alma da pedra. Deforma tudo. Põe a mão e molha – destinge tudo. A alma – diz ele – ao contrário do que tu supões, a alma é exterior: envolve e impregna o corpo como um fluido envolve a matéria. Em certos homens a alma chega a ser visível, a atmosfera que os rodeia toma cor. Há seres cuja alma é uma contínua exalação. Há-os cuja alma é de uma sensibilidade extrema: sentem em si o universo. Daí também simpatias e antipatias súbitas quando duas almas se tocam, mesmo antes de a matéria comunicar. O amor não é senão o impregnar desses fluidos, formando uma só alma, como o ódio é a repulsão dessa névoa sensível. É assim que o homem faz parte da estrela e a estrela de Deus. Nos vegetais, nas árvores, a alma é interior, pequenina emoção, pequenina alma ingénua e humilde, que se exterioriza em ternura a cada primavera: tocada pelo grande fluido esparso, vem à tona em oiro e verde, em deslumbramento. Nos minerais, na pedra concentrada e recalcada, que dor inconsciente, que esforço cego e mudo por não poder abalar as paredes e comunicar com a alma do universo! A pedra espera ainda dar flor.”

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