Danou-se, ouvia-a exclamar

Ai a minha vida, meu caro, ai a minha vida que aflita que estou!... Olhei para a única fada que faz discursos perfeitinhos e que maneja as palavras como ninguém; e, preocupado, esperei que ela explicasse o porquê da sua aflição. Nem me viu, tal era o seu desnorte. Em voz baixa e tom suave, trauteei o nome dela em suave canção, sem esperança de qualquer resposta. Graças a Deus!!! Ela, linda, deslumbrante de azul mar vestida, disse que estava muito aflita porque, sem saber porquê, se tinha apercebido que as suas palavras pareciam ter o mesmo valor que o significado; e, num sussurro delicioso, suspirou, "ai semântica minha"! Arrisquei perguntar: está a dizer-me que para si palavras e significado são o mesmo?! Pois é, murmurou de voz embalada, pois é mesmo o problema; e disse mais, disse que os biólogos e os filósofos concordam que o grande talento que separa os humanos dos outros animais é faculdade da linguagem e ainda muitos se desunham para saber como foi possível adquirir a linguagem e como é que esta evoluiu ao longo de milénios. Entenda-me, interrompi, entenda que eu não sou capaz de perceber a sua aflição, aconteceu algo estranho? Estranho é como quem diz, meu caro, acontece que quando estava a fazer ontem o meu discurso político (perfeitinho, mesmo muito perfeitinho, como sabe), ouvi um um janota lindo comentar que o meu discurso estava tão bem feito que até lhe apetecia saltar de contente… E não é que quem saltou fui eu? Dei uns saltinhos trémulos (até a pulsação me batia na palma das mãos, pense só!), mais parecia, meu caro, que estava de sabrinas no meu páteo lavadíssimo, que vergonha, Jesus, Maria, José! Descansei-a, dizendo-lhe que estava mais que estudado que, quando uma pessoa ouve verbos ou nomes associados a uma determinada parte do corpo, as regiões motoras do córtex cerebral activam-se imediatamente, o que prova que no cérebro as palavras e o significado parecem ser quase o mesmo e, portanto, não admira que ela tivesse saltado de contente. Que mocho sábio, exclamou com lábios fendidos no Egipto enquanto apanhava o cabelo, então não é que tem razão? Recordo-me agora, divagou como quem não quer falar no assunto, que a linguística sempre teve um papel importante no pensamento evolucionista e até me recordo bem de o François Jacob me ter dito que a evolução é oportunista e que nunca parte do zero. Tudo bem, comentei, com ar displicente, tudo bem mas esta sua tirada sobre a linguística serve para enrolar e confirmar o que eu já imaginava que acontecesse quando fizesse o seu discurso: alguém perderia a cabeça quando a visse de vestido azul e a ouvisse falar de voz quente e sábia... É ou não verdade, questionei, que deu “saltinhos sabrinados” porque se sentiu admirada?! De olhos grandes nas mãos meninas (ela não sabe mentir), sussurrou em timidez controlada, que sim, que foi verdade e que por isso estava tão aflita por se sentir trepadeira do amor... Desta vez, provoquei-a, eu sei explicar o que lhe aconteceu..., estudos recentes demonstraram que o cérebro motor se activa em 80 milésimos de segundo, enquanto a percepção consciente precisa de 300 milésimos de segundo; sei até, imagine só, que este automatismo é a marca de fábrica do órgão mental da linguagem, o que não me aflige; o que me aflige é a sua percepção consciente porque não consegue esquecer aquele janota lindo... Está a dizer-me, meu caro, invectivou-me, que eu dei saltinhos porque estava contente por ter ouvido elogios desse meu admirador, é isso?! Deixe-se disso e beba chá de sálvia, faz bem ao catarro! Nem digo nem deixo de dizer, disparei,  fulo e atolado em ciúmes... Danou-se, ouvia-a exclamar.

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