Analisar o 25 de Abril e cristianizar a Páscoa
Debato-me hoje, meu
caro, com a ideia de conciliar dois sentimentos diferentes, olha o que havia de
me acontecer, ora esta! Ora esta digo eu, ainda nem acabei o primeiro sono! Respondi, à medida que me enroscava na
minha manta de lã merina. Claro que já acabou o primeiro sono, sossegou-me, aliás esteve sempre a
sonhar comigo enquanto dormia. Vendo-a (que convencida!) a olhar-me, a apanhar o cabelo e a estender-me as mãos cheias dela, perdi as
estribeiras e abri os braços… Ela deixou-se cair em mim, nem digo nem conto o
que aconteceu; nem que o quisesse, alguma vez saberia descrever nem trémulos arfares nem ritmos convulsos nem uma procissão de pensamentos... Empertigou-se de rosto tingido de vermelho rosado e fogo avivado, e provocou-me
de novo: os meus dois sentimentos dizem-se
simples: sinto que é urgente analisar o comportamento do Parlamento que é o
filho maior do 25 de Abril, e sinto que é necessário cristianizar a Páscoa que
é uma passagem… Interrompi-a com um afago em jeito-maneira: percebo a sua dificuldade, mas a ordem dos
sentimentos não será ao contrário, cristianizar a Páscoa (hoje é sábado de
aleluia) e analisar o comportamento do Parlamento (a comemoração do 25 de Abril só acontecerá na próxima semana, verdade)? Ai a sua ideia de viver no tempo linear, meu caro, ai
a sua ideia tão pequenina, soletrou
as palavras, de se agarrar ao calendário…, mas (oh surpresa minha!) não é que
tem razão e até nem sabe que tem razão? Ela já tinha saltado da minha cama e,
sentada descalça no chão do soalho castanho velho, bela e cheia de vida rabiscava de afogadilho, num
caderninho de capa creme e cheia de imagens, sei eu lá bem o quê…, fiquei a espiá-la furtivamente e, pelo canto do olho, apenas li, em rabiscos de letra redondinha, "ovos de Fabergé", ovos de quê, suspirei?!. Percebi que tinha terminado de escrever e questionei: tenho razão e não sei que tenho razão? Tem e não tem e não sabe que tem, porque sim, deixe para lá, mas tenha atenção que o seu suspiro deve ser "ovos de quem" e não "ovos de quê", respondeu de
olhos grandes a mudar de cor; tem razão, de facto, porque me fez recordar que fui eu que
escrevi o primeiro parágrafo do capítulo um – Um Passo para Luz - do
livro de António Damásio “O Sentimento de Si”; e não tem razão porque o
comportamento do Parlamento no próximo 25 de Abril já me faz cócegas na
moleirinha (ui o seu sorrisinho a silvar)...; e tudo por causa de uma guerra de alecrim e manjerona (ai aquela assunção barroquista, ambígua e pouco ou nada conseguida, bem feito!) que está a diminuir o significado político da comemoração do próximo dia 25 de Abril. Não percebo, disparei. Simples, ripostou, tenho que perdoar àquela (?) assunção para me poder concentrar nestes dias de Páscoa, percebeu agora ou quer que faça um desenho? Armei-me em lerdinho, e comecei a ler, em voz alta, pausada e em doce deleite, o primeiro parágrafo do livro de António Damásio: "Sempre me intrigou o momento de penetrar na luz..."... Aí tem, meu caro, aí tem, interrompeu-me de olhos oscilantes e gentil doçura, agora (graças a si, obrigada, obrigada, obrigada) já consigo conciliar os meus dois sentimentos porque, ao entrar na luz da Páscoa, perdoo (contrariada mas perdoo) à assunção o inusitado e público (e publicado e divulgado) inconseguimento precoce (bem merecido, diga-se de passagem); e, gaguejou, vou, vou, vou, vou aninhar-me (inteinha e inextinguível como é meu timbre)) a analisar (liberdade, poder local, indignação, resistência, participação, futuro) o 25 de Abril e a cristianizar (passagem, luz, vida, flores, frutos, beleza, divino) a Páscoa.
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