Só a verdade é porto seguro e cais de partida, meu caro!
Na semana passada comprei e li com muito interesse (e recomendo vivamente a sua leitura e estudo) este novo livro de Pedro
Strecht… Trata-se de um livrinho muitíssimo bem pensado e fundamentado; o autor revela uma cultura muito acima da
média (a relação que ele estabelece entre alguns desenhos de crianças e alguns textos da “A Tempestade” de Shakespeare (para se fazer entender) é
interessantíssima, e o seu saber também desvenda um acrisolado fervor pela intervenção
profissional terapêutica junto de crianças e de adolescentes em crise... Logo na entrada do livro (e que se prolonga ao longo do "amor é uma ilha infinita"), o autor marca um ritmo de qualidade com duas muito bem escolhidas citações de “A Tempestade”: “Somos
feitos da mesma matéria que os sonhos” (Acto IV, Cena I) e “Não carreguemos
nossas lembranças com o peso de tristezas já passadas” (Acto V, Cena I).
Uma
vez que me interesso pela investigação e pela prática na intervenção terapêutica e educativa junto das crianças e dos jovens em crise (sublinho que "crianças-ilha" e "crianças-náufrago" são metáforas excelentes para abordar o tema), e porque conheço (razoavelmente, penso) uma significativa parte da obra de William Shakespeare (até já tive a
oportunidade de estar na casa onde Shakespeare nasceu e viveu, em Stratford-upon-Avon
na Inglaterra, ouvindo, imaginando e discutindo possíveis contextos da sua vida), a leitura pausada e curiosa deste pequeno livro tornou-se-me deveras aliciante..., e com essa leitura muito aprendi.
Li
e reli o livro e voltei a ler e a reler (até graficamente o livro é muito bonito)... Mas, algo preocupado, regressei às páginas 60 e 61 porque algo me parecia não bater certo (trata-se de amnésia selectiva, pensei); transcrevo o texto que muito me incomodou porque (sem necessidade) apenas se refere a uma parte (muitíssimo importante, sublinhe-se) do que aconteceu, e é pena. Assim:
-
“Posso contar ainda mais do que me
obrigam os olhos, breves recordações do longo processo de abusos contra
crianças e adolescentes da Casa Pia de Lisboa, de quem fui médico. Lembro-me
bem que ter diante de mim uma lista com nomes de 132 rapazes suspeitos de terem
sido vítimas de abuso sexual era algo de profundamente inquietante. Absolutamente
submerso pela transcendência do drama, juntamente com uma pequena equipa de
cinco pessoas, deparava-me não raras vezes com a questão tão simples como
inexplicável: porquê? Porquê? Porquê a existência e a extensão destes factos, o
muro de silêncio secular que sobre elas se erguera, porquê a incapacidade quase
miraculosa de, mesmo assim, muitos conseguirem seguir em frente, porquê a
limitação de respostas terapêuticas ante tão profundas feridas que sangravam de
forma lenta mas ininterrupta? E porquê a nós este trabalho tão espinhoso nos
havia calhado em sorte? A evocação da noite parecia ter tomado conta do
ambiente que nos envolvia e sobre ela um espesso nevoeiro que quase não
permitia o reconhecimento de cada um de nós, quanto mais a luz certa que nos
orientasse pelo caminho seguro e, mais importante, justo. Por baixo, uma
espessa lama conferia a cada passo a perspectiva da queda abissal, sem retorno
possível. Assim foi durante anos. Muitos anos, dez mais precisamente. Demasiado
tempo perdido (ou ganho?), espetador e ator de uma terrível tragédia não
anunciada onde o alento foi sempre e só determinado pela capacidade de
prosseguir até ao limite de um breve – mas nunca definitivo – sopro de
recompensa. Recentemente fui inesperadamente visitado por um rapaz que não via
quase há dez anos. Aguardava na sala de espera do consultório e reconheci-o
apenas pelo mesmo olhar e sorriso tristes. Fora abusado sexualmente e
fotografado enquanto aluno interno da Casa Pia de Lisboa. À época falou-me
desses episódios traumáticos sob compromisso de eu não quebrar o sigilo. Voltou
dez anos depois, no dia em que disse ter tido alta de um hospital psiquiátrico
na sequência de uma tentativa de suicídio. Agarrando-se a mim a chorar, disse
que o tínhamos ajudado muito e que agora queria tratar-se.”.
Debrucei-me, de seguida, sobre cada uma das linhas (palavra por palavra) de cada parágrafo deste relato narrativo,
interrogando-me sobre as razões que terão levado Pedro Strecht a apagar da sua memória (ou a omitir com intencionalidade):
que pelo menos desde 1997, e na qualidade de pedopsiquiatra (sem dependência hierárquica), acompanhou adolescentes em crise (suponho que só rapazes) na Casa Pia de Lisboa, e nunca se apercebeu (que se saiba) de situações anómalas, relacionadas com abusos sexuais (ou outras) até ao final do ano
de 2002; que foi ele que encaminhou (nos anos noventa) um desses adolescentes
(que mais tarde, no ano de 2003 e seguintes, viria a ser considerado uma testemunha chave no denominado “processo
Casa Pia”) para um Lar de Crianças e Jovens da Casa Pia de Lisboa, pelo facto de esse adolescente ter sido
vítima de abusos sexuais numa instituição do Porto; que ele, a partir do ano de
2003, teve um papel relevante em declarações à comunicação social (atestando, nomeadamente, a veracidade
dos relatos de alguns adolescentes-vítimas), enquanto desempenhava funções de Coordenador do gabinete para a intervenção em crise da Casa Pia de Lisboa (transformado, posteriormente, em gabinete de saúde mental da Casa Pia de Lisboa e cujo tempo de vida e vicissitudes e custos e resultados e impacto sistémico seria interessante dar a conhecer).
Como
não sei mesmo nem o que dizer nem o que pensar sobre a sua atitude ou a sua opção (de apagar da memória ou de omitir dados importantes), e embora não me esqueça de uma das citação lapidares que abrem o livro: "não carreguemos nossas lembranças com o peso das tristezas já passadas"), sugiro que Pedro Strecht leia e pense nesta última citação de “A Tempestade”
(Acto III, cena I), com que termina o seu excelente livro: “Ó céus, ó terra, sede minhas testemunhas! Se eu disser a
verdade, coroai o que eu disser com um final feliz; se eu mentir, trocai por
mal tudo o que de bem me está fadado. Mais do que tudo o mais que há neste
mundo, eu vos amo, vos estimo e vos venero.”.
À minha indecisão de publicar estes comentários, respondeu a voz da minha consciência crítica, límpida como é seu timbre: só a verdade é porto seguro e cais de partida, meu caro!
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