Dobrando o canto direito do cartão será o sim
Encontrei, meu caro, este cartão guardado num livrinho muito curioso sobre a evolução (passo algumas horas dos meus dias 13 em lojas de alfarrabistas, sabe, pois não sabe?); o livrinho (cujo autor é E. W. MacBRIDE) foi publicado em Portugal em 1939 (cinco anos depois da publicação dos estatutos da sociedade portuguesa de estudos eugénicos); e quando (à procura de tesouros) folheei o livro e li este cartão amarelado em rosa velho, pensei com os meus heterónimos dilectos: que forma tão formosa de pedir namoro a alguém, que lhe parece? E o que me diz da expressão "e feliz seria si V. Ex. acceitasse os meus protestos de amor"? Acordou-me de lábios seda e com estes desabafos-interrogados, a única fada (que também é momo e tartaruga) onde os saberes se interrelacionam, naturalmente e sem peias. Se quer que lhe diga, respondi, prefiro, antes de me pronunciar, que me abra um postigo de luz para o seu interesse pelo tema evolução...; uma fada preocupada com a evolução mais me parece um paradoxo evolutivo, provoquei. Sorriu quando eu disse que ela parecia um paradoxo evolutivo e retorquiu que eu sim, eu era um exemplo de um paradoxo evolutivo porque tinha os dentes mais pequenos e o cérebro maior que os meus antepassados... Mas que pitosga atrevido! Invectivou-me. Então não vê que sempre me divirto com as teorias que alguns apregoam (ou apregoavam), sabendo eu como tudo aconteceu (e como vai acontecer) ao longo do tempo? Ora oiça (deixe a sua imaginação à solta e vai gostar de ouvir), continuou, como von Baer parodiava, em 1928, o transformismo de Jean-Baptiste de Monet (Cavaleiro de Lamarck): "Um peixe nadando até à praia, deseja dar um passeio em terra. Nada mais do que conseguir gradualmente pelos seus esforços mudar as barbatanas em membros, e os seus descendentes, depois da várias gerações, seriam sem dúvida, bem sucedidos no desenvolvimento de pulmões, vendo-se livres das guelras; a única dificuldade seria, de facto, a circunstância de terem de existir, sem respirar, durante várias gerações". Interessante, dei por mim, a comentar, até já estou a ver o peixe, deambulando e à cata de outros animais para trocar ideias e atravessar os cânticos da vida... Mas espere, tenha calma e doseie essa sua imaginação desvairada, interrompeu-me..., sabe (espanto dos espantos) que, na altura, se descobriram uns "peixes indianos que começam a vida (como qualquer outro peixe) na água mas, à medida que crescem, começam a dar passeios em terra à procura de alimento e aprendem a respirar o ar através da membrana mole que guarnece as cavidades das guelras; estas cavidades, à medida que a respiração do ar se tornava mais pronunciada, transformavam-se em pulmões". Tenho quase a certeza que está a brincar comigo, sussurrei, mas (tudo bem) aguçou a minha curiosidade...; só não consigo esquecer as suas duas perguntas sobre o cartão que encontrou no seu livrinho sobre a evolução... Ainda lhe perguntei se no apelativo "por ti minha alma soffre" estaria a chave da resposta, garantindo-lhe que sim, que se trata de uma forma formosa (bela e segura) de pedir namoro a alguém... Meu adorado "carapau de corrida" (ontem chamou-me cágado e hoje carapau de corrida, para ela não há limites, decididamente!), martelou as palavras, tem alguma razão, mas o cartão traduz (para o comportamento dos humanos) a decisão de um peixe que, arriscando trocar guelras por pulmões, se aventura nos caminhos da evolução (reparou, de certeza, que o cartão se lê da direita (o sim) para a esquerda (o não) e para baixo (o talvez...). Só falta, arrisquei, que me diga que este cartão também é uma forma de procurar alimento e que a alma sofre porque está com fome... Se é a alma, disse sorrindo gaiteira, que está com fome ou não, não sei, meu caro, mas que é a apressada vontade de comer que está em jogo, lá isso é! Vontade de comer?! Não percebo, assegurei-lhe... Na água ou em terra, meu caro, até os peixes se comem uns aos outros e não precisam de recorrer às palavras como os humanos fazem, para com elas se divertirem a esconder (mas sugerindo), o que desejam que aconteça... Olha-me este, suspirou divertida e guicha, ainda não ouviu falar no Foxp2? Não, não ouvi, disparei já atafulhado de tanta sabedoria, e não me contive: eu seria bem mais feliz se, em vez de me empanturrar de saberes soltos, aceitasse os meus protestos de amor por si... Sorriu-se e derramou-se em mim, enquanto com as mãos esguias-radiais e alongadas (as suas mãos têm um elevado número de terminações nervosas resultado da sua complexa coordenação entre mãos finas e olhos bogalhados de pérola), dobrava o canto direito do cartão amarelado em rosa velho... Linda!
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