Não é quem, é proteína

Pois sim, meu caro, estou agora a recordar-me que um dia me disse que a vida vale sempre a pena ser vivida. Lembra-se? Assim se me dirigiu, de ar tristinho, a única fada sempre disponível, autêntica e coerente. Disse-lhe que não me recordava mas que me agradava muito, vê-la rir; e, perguntei-lhe de supetão: e se fosse a um teatro ver uma peça em que pudesse rir e rir e rir e deixar de estar triste? Excelente ideia, respondeu. Vou vestir uma roupa simples, vou apanhar o cabelo, e pôr um complemento muito bonito que comprei para a cabeça (é em preto, tem uma linda pedra verde brilhante e uma flor, é discreta, não se assuste); e vou usar uma mala nova (tudo em tons de verde, aquele verde-limo do meu vestido com curvas soltas no andar). Eu, quietinho, estava absolutamente deliciado a ouvi-la e a tentar recordar o contexto em que lhe teria dito que a vida vale sempre a pena ser vivida. E ela, tamborilava palavras, sem fazer conta de mim, e falar com os seus botões: ah, e os brincos e o anel com pedras verdes-água (será que ele se lembra que os usei quando jantou comigo?). Naquele preciso momento, recordei um jantar fantástico (ainda um dia hei-de descobrir porque é que ela diz fabulástico), onde a ouvi dissertar (que sábia!) sobre as vibrações de uma proteína ("como as cordas de um violino, meu caro, as proteínas do corpo humano vibram segundo diferentes padrões", foi esta sua afirmação que me deixou de cara à banda); fiquei empolgado pela música secreta da vida e deliciosamente fascinado com aquela proteína; e ainda tenho comigo os seus olhos grandes quando, naquele seu ar de “toma lá que já levas”, me disse que essa proteína abunda na clara do ovo, que existe nas lágrimas, na saliva e no muco (esta do muco foi direitinha para mim porque, naquele dia, eu estava muito constipado e com frio); mas disse ainda mais, disse que essa proteína é uma barreira contra as infecções e que, vibrando, desencadeia energia.... Ah, lembrei-me agora: sim, foi nessa altura que lhe disse que a vida vale sempre ser vivida... Atarefada, vaidosa e sedutora quanto baste, ela continuava a ignorar a minha presença: o casaco, talvez o preto, sim, o casaco preto (comprido, que está frio), fica sempre bem. Linda, virou-se para mim e, sem peias (que bem lhe fica o cabelo apanhado), perguntou se eu a apreciava... Nem abri a boca, estonteado com a infindável ondulação de uma linha que nascia num ombro e só terminava na ponta do pé..., mas não me saía da cabeça a vontade de me lembrar do nome da proteína. E ela, divertida e nada inibida: sim, acho que gosta, agrada-lhe, certamente que sim, vê-se demasiado bem e promete; vê-se tão bem que o aconselho a ter cuidado quando estiverem outras pessoas perto de nós. Vá lá, venha daí comigo ao teatro e conto-lhe tudo sobre a sua adorada lisozima. Sobre quem?! Perguntei desconfiado, curioso e apreensivo; a minha adorada lisozima?! A gargalhada que ela soltou, deve ter-se ouvido no universo inteiro, quando respondeu, galhofeira: não é quem, é proteína.

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