Mas o amor não está na origem de toda a criação?

Criar é próprio do artista; onde não há criação, não existe arte. Enganar-se-ia quem atribuísse este poder criador a um dom inato. Em matéria de arte, o criador autêntico não é somente um ser dotado, é um homem que soube ordenar, visando um determinado fim, todo um conjunto de actividades do qual resulta a obra de arte. Assim, para o artista, a criação começa com a visão. Ver já é um ato criador e que exige certo esforço. Tudo o que vemos na vida cotidiana, sofre, mais ou menos, a deformação engendrada pelos hábitos adquiridos, e o facto é talvez mais sensível numa época como a nossa, onde cinema, publicidade, periódicos, impõem diariamente um fluxo de imagens preconcebidas, que são um pouco na ordem da visão, o que é preconceito na ordem da inteligência. O esforço necessário para nos libertar exige uma espécie de coragem; e essa coragem é indispensável ao artista que deve ver todas as coisas como se as visse pela primeira vez; é preciso ver a vida inteira como no tempo em que se era criança, pois a perda desta condição priva-nos da possibilidade de uma maneira de expressão original, isto é, pessoal.
Tomando um exemplo, creio que nada é mais difícil para um verdadeiro pintor do que pintar uma rosa, porque para o fazer é preciso, antes de mais nada, esquecer todas as rosas que já foram pintadas. Aos que me vinham ver, em Vence, eu costumava fazer esta pergunta: “Vocês viram os acantos sobre a orla que margeia a estrada?“. Ninguém os havia visto; todos teriam reconhecido a folha de acanto sobre um capitel coríntio, porém a lembrança do capitel não permitia que se visse o acanto no estado natural. É um primeiro passo para a criação ver-se cada coisa em sua verdade e isto pressupõe um esforço contínuo. Criar é expressar o que se tem dentro de si. Todo esforço autêntico de criação é interior. Ainda assim é preciso cultivar essa sensação com o auxílio dos elementos extraídos do mundo exterior. Aqui intervém o trabalho pelo qual o artista incorpora e assimila gradativamente o mundo exterior, até que o objecto desejado se torne parte dele mesmo, até que o tenha dentro de si e possa projectá-lo na tela como sua própria criação. Quando pinto um retrato, tomo e retomo o meu assunto a cada vez é novo o retrato que faço; não o mesmo corrigido, mas outro retrato que recomeço; e cada vez é um ser diferente que eu extraio da mesma personalidade. Aconteceu-me muitas vezes, a fim de esgotar de maneira mais completa meu estudo, inspirar-me em fotografias da mesma pessoa em idades diferentes; o retrato definitivo poderá representá-lo mais jovem, ou com aspecto diferente do que tinha quando pousava, porque este assunto me pareceu mais verdadeiro, mais revelador da sua personalidade real.
A obra de arte é assim o coroamento de um longo trabalho de elaboração. O artista absorve tudo o que à sua volta for capaz de alimentar-lhe a visão interior, directamente, quando o objecto que desenha deve figurar na sua composição, ou então, por analogia. Coloca-se assim em estado de criar. Enriquece-se interiormente de todas as formas de que possa tornar-se senhor e que ordenará algum dia conforme um ritmo novo. No expressar esse ritmo, a actividade do artista será realmente criadora. Para o conseguir, preferirá a selecção ao acumular de detalhes. Deverá escolher, por exemplo, no desenho, dentre todas as combinações possíveis, o traço que se revelar plenamente expressivo, como que portador de vida, procurar as equivalências pelas quais a natureza se transpõe para o âmbito próprio da arte. Na “Nature morte au magnólia”, representei em vermelho uma mesa de mármore verde; numa outra ocasião precisei de uma mancha escura para evocar a cintilação do sol sobre o mar; essas transposições não foram absolutamente o efeito do acaso ou da fantasia, mas sim o coroamento de uma série de pesquisas, em consequência das quais esses matizes me pareceram necessários, tendo em vista suas relações com o resto da composição, a fim de comunicar a impressão desejada. As cores, os traços, são forças, e no jogo destas forças, no seu equilíbrio, reside o segredo da criação.
Na capela de Vence, que é o coroamento das minhas pesquisas anteriores, tentei realizar esse equilíbrio de forças; o azul, o verde, o amarelo dos vitrais, compõem no interior uma luz que não é propriamente nenhuma das cores empregadas, mas sim o produto vivo da sua harmonia, das suas relações recíprocas; essa cor-luminosidade deveria projectar-se sobre o campo branco, cercado de preto, do muro que fica "fronteiro" aos vitrais e no qual há linhas propositadamente muito espaçadas. O contraste permite-me dar à luminosidade todo o seu valor vitral, fazendo dela o elemento essencial, aquele que dê o colorido, aqueça, anime, no sentido próprio, este conjunto ao qual importa conferir uma impressão de espaço ilimitado a despeito de suas dimensões reduzidas. Em toda a capela não há uma só linha, um pormenor, que não concorra para essa impressão. Parece-me que, nesse sentido é que se pode dizer que a arte imita a natureza: pelo carácter de vida que um trabalho criador confere à obra de arte. Então, a obra aparecerá igualmente fecunda e dotada desse mesmo frémito interior, dessa mesma beleza resplandecente que as obras da natureza possuem.
É preciso um amor muito grande, capaz de inspirar e de sustentar esse esforço contínuo em direcção à verdade, essa generosidade conjunta e esse despojamento profundo que envolve a génese de toda obra de arte. Mas o amor não está na origem de toda criação?
Henri Matisse

Adenda
Mensagem recebida (manhãzinha) e transcrita sem cortes nem recortes
Decidi, meu caro, entrar no seu cérebro e ditar-lhe este texto de Matisse porque, só assim, poderá entender um pouco melhor uma parte (itens 21 a 23) da "Prova de Avaliação de Conhecimentos e Capacidades", que hoje os professores que pretendam candidatar-se a leccionar, no próximo ano lectivo, deverão realizar e que muitos deles já decidiram boicotar. Tem opinião formada sobre este assunto? Claro que não tem..., mas olhe, pense que se trate de mais uma estúpida teimosia governamental, depois de mais um dossier (é só mais um entre tantos outros) mal gerido pelo Ministério da Educação; na prática (neste ano) esta prova é um mero expediente para justificar despedimentos... Aqui ao nosso lado há outras prioridades que conduzem inevitavelmente à selecção e escolha dos melhores professores, mas enfim!... O que Matisse diz (pense agora em mim, perto de mim e comigo) é que "é preciso olhar a vida inteira com olhos de criança"; e eu tenho a certeza que assim é, porque os meus olhos grandes (e bogalhados de pérola) até acotovelaram as pestanas quando o viram e ouviram, a si, dizer: "não posso viver sem si, fique ao meu lado"

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