Sobre milhões de pessoas e seus problemas não ouvi uma palavra, numa noite de audiências televisivas recorde

Na noite das eleições autárquicas, cujos resultados foram rapidamente lidos nos seus múltiplos significados nacionais, vi de tudo um pouco, em termos de análise político-partidária, de futurologia política, de ilações políticas a tirar por vencedores e vencidos, etc. A mediatização televisiva da noite eleitoral, com múltiplos comentadores políticos, com profusão de declarações partidárias, com constantes directos das sedes de campanha ou dos partidos, com declarações políticas dos candidatos vencedores e confissões políticas e pessoais dos candidatos vencidos dominaram a noite eleitoral e fizeram dela um espectáculo demasiado bélico, destinado sobretudo a captar audiências.
As pessoas, as que votaram ou se abstiveram, as que votaram branco ou nulo, foram completamente varridas da noite televisiva.
Os partidos e os seus candidatos, bem como os candidatos independentes (e não distingo entre verdadeiros e falsos independentes) submeteram-se ao voto popular, penso eu, todos eles, apenas para melhor servir os seus concidadãos, pois esta é a essência da democracia. Mas sobre as pessoas não ouvi uma palavra.
Eis alguns aspectos que me dão que pensar:
Não ouvi um comentário sério sobre a abstenção nem sobre os votos nulos e brancos. E todavia a respectiva expressão, mesmo que os cadernos eleitorais careçam de ser limpos, tornou-se demasiado preocupante, em termos de regime, porque subiu substancialmente em relação a todas as anteriores eleições autárquicas. No seu conjunto, ultrapassou os 54%. E só a abstenção subiu não menos do que 6% em relação às autárquicas de 2009. Isto mesmo depois de apelos e alertas vindos de todos os lados, incluindo os do Presidente da República e de todos os partidos políticos e movimentos independentes para os cidadãos comparecerem nas urnas e fazerem as suas escolhas, sob pena de depois se não poderem queixar.
Podemos, em termos de regime, nada fazer perante uma situação destas? O que falha na mobilização dos cidadãos para votar? Quem vota branco ou nulo e porquê? A lei eleitoral precisa de ser modificada e em que termos? Os partidos têm de se abrir à sociedade civil de forma clara e transparente? A possibilidade de candidaturas independentes tem de ser facilitada?
Os quase 900 mil desempregados, jovens desempregados, desempregados de longa duração votaram ou não e, se sim, votaram em candidatos ou branco ou nulo?
Os cerca de 2 milhões de pobres e de novos pobres, bem como os que para lá caminham, por obra dos baixos salários e da austeridade, ficaram à margem do acto eleitoral ou participaram nele, e, neste caso, votaram em candidatos ou branco ou nulo?
Os homens e mulheres, as famílias que querem ter filhos, tendo o país uma perigosa taxa de natalidade negativa, votaram ou não, ou votaram em candidatos ou branco ou nulo?
E os velhos, os velhos deste país, o que decidiram eles fazer?
Sobre todos estes milhões de pessoas e seus problemas não ouvi uma palavra numa noite de audiências televisivas recorde.
Pelo contrário, não faltaram especulações inúteis para as pessoas, como, por exemplo, sobre a dimensão da vitória do PS e a do seu secretário-geral. Aguenta-se até às europeias, até às legislativas? A maioria conseguida pelo presidente da Câmara Municipal de Lisboa é mais forte que a alcançada pelo secretário-geral do partido? Também todas as especulações políticas foram feitas em relação ao futuro do PSD, partido tradicionalmente com grande implantação autárquica, e ao do seu presidente. Qual será o futuro do partido e o do seu presidente? Chegará às europeias? E às legislativas? Haverá turbulência interna a curto prazo?
Confesso a minha desilusão, que não sei se será a sua: as pessoas contaram quase só para votar.

Carlos Moreno
Juiz Conselheiro jubilado do Tribunal de Contas

Nota
Consultem-se aqui e aqui  dados brutos sobre os índices de participação eleitoral desde 1976..., palavras para quê?!

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