Ninguém pode tirar-me o que sinto
Imagine só que uma
frase sua entrou e não saiu do meu coração e da minha cabeça, e nem preciso de
a ler porque a oiço repetidas vezes; até oiço a sua voz…, imagine só! Olhei, vi e apreciei a deliciosa fada única, apreensiva e atrapalhar-se a si própria enquanto falava.
Pedi-lhe emprestada a gaguez e perguntei-lhe se achava bem, acordar-me quando ainda
não eram cinco horas de uma manhã (cinzenta e intranquila) do primeiro dia de Outono. Não acho bem, nem deixo
de achar, tinha lhe dizer isto e está dito, respondeu
algo preocupada mas divertida e de voz inclinada, por estranho que possa parecer. Algo de
estranho se passa, invectivei-a,
porque o seu ar divertido não deixa margens para dúvidas. O meu ar divertido
apenas quer dizer que a sua frase activou os meus dois sistemas, excelentes e apuradíssimos,
o sistema emocional e o sistema racional…, o que é que imaginou, perguntou-me, quando eu disse que a sua
frase não saiu do meu coração e da minha cabeça? Imaginei que devo ter dito
algo que a preocupou (ou que lhe agradou…); e tanto assim foi, que disse que
nem precisava de ler a minha frase porque a ouvia várias vezes e até ouvia a minha voz, respondi, olhando-a de viés. Para um
amador de ciência, meu caro, não está doente de todo a sua imaginação, provocou-me, sem dó nem piedade. Mas
sempre lhe dou conta do meu ar divertido, continuou. Acontece que quando ouvi a
sua voz, me recordei de uma conversa interessante com Julian Janes, no mês de Fevereiro de 1976: dizia-me ele num almoço que tivemos à beira
mar (vá lá, ponha esses ciúmes de lado, não seja tão transparente) que até ao
segundo milénio antes de Cristo, os seres humanos não possuíam uma consciência
introspectiva; por isso, as suas mentes encontravam-se divididas em duas partes
porque no cérebro o hemisfério esquerdo seguia as instruções do hemisfério direito…, e dizia mais, dizia que essas instruções na forma de alucinações
auditivas eram interpretadas como as vozes dos deuses. Diga lá se não tenho
razão para estar divertida? Até hoje ninguém ainda sabia se a teoria do Julian
tinha pernas para andar. Agora sei que não. E sei que não, porque eu brinco (sempre brinquei desde os confins do tempo) com
os hemisférios cerebrais em comunicação fluída, por um lado, e por outro,
(desculpe, sim?) mas ainda não o considero a si um deus (a menos que seja um deus de trazer por casa)…, mas que estou
desconfiada que algo não bate certo, lá isso estou. E sorriu. E eu, tropeçando nas palavras dela e sem saber o
que dizer, reduzi-me ao silêncio (sei que não tenho o dom da quietude); e, com uma cara muito aflita, fiquei a ouvir a voz dela, num trinado lindo na minha
cabeça, que dizia, melíflua e afirmativa: ninguém pode tirar-me o
que sinto.
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