Deixe a chuva, é água que cai do céu

Nem queira saber, ontem estive num jantar (com gente séria, generosa e empenhada) e fiquei verdadeiramente incomodada quando me contaram que há crianças que vão para a escola com fome; crianças que não comem, meu caro, não podem crescer normalmente porque não existe vida sem trocas e transformações de energia - os seres vivos são sistemas abertos que trocam matéria e energia com o ambiente que os rodeia, soprou-me, num chamego lento de mãos cegas, a minha excelente fada única..., já a chuva de um dia a amanhecer cinzento, se tinha feito anunciar. Acredita, suspirou, que senti, dolorosamente, que me faltava o ar? Imagine o meu sofrimento: eu que não posso agir, não posso falar e nem posso pensar um pensamento, sem ar. Claro que acredito, respondi de imediato. Sabendo eu, continuei, a natureza da sua sensibilidade apurada, penso que terá passado um mau bocado porque a sua forma de estar e de ser, é uma dádiva do amor sapiente; mas deixe que lhe pergunte se alguém está a resolver o problema porque não é justo que as crianças se não alimentem numa fase tão importante da sua vida. Resolver não, mitigar sim; dizem-me que mitigar é o possível numa situação de crise social grave, desde que com pequenas refeições enriquecidas; refeições enriquecidas porque também é na infância (já ouviu falar nos olhos da barriga?) que se constrói o imaginário visual, assegurou-me com os seus olhos grandes lacrimejantes de emoção. Tão perturbado fiquei de espreitar as suas emoções e de a ver assim tão frágil, linda mas triste, que resolvi alterar o rumo da conversa, questionando-a de chofre: o ar é um mistério, é um enigma para os sentidos? A sua resposta não se fez esperar, embrulhada num sorriso de timidez corada. Meu caro, adoro-o por me ter desafiado e por me libertar desta ansiedade e desta dor que sinto no meu peito. O ar é uma presença sensível difusa que me envolve, me abraça e me acaricia quer por dentro quer por fora, movendo-se em ondas na minha pele, fluindo nos meus dedos; e, esgueirando-se pela minha garganta, enche-me os pulmões e alimenta-me o sangue e o coração, alisando-me o tempo perdido. Confirma então que o ar é um mistério e um enigma para os sentidos, insisti. Sim é, garantiu-me. É um mistério e um enigma para os sentidos porque é completamente invisível…, podemos senti-lo, saboreá-lo, cheirá-lo até ouvi-lo, mas não podemos vê-lo. Mas disse-me há minutos que o ar é uma presença sensível, e se é uma presença sensível, nada haverá que o torne evidente aos olhos, atrevi-me a perguntar em sussurro (tão feliz eu me sentia com ela juntinho a mim). Que “jeito maneira” (aprendi esta expressão com um amigo meu que nasceu no Ceará no Brasil) de me querer ser agradável, suspirou com ar feliz e com os olhos a falar, enquanto eu perseguia o brilho e a nudez (seda e descontraída) que escorria pelos contornos do seu elegante vestido verde-limo… Claro que sim, explicitou, as asas frementes de uma águia, a trajectória em espiral de uma folha quando cai, uma teia de aranha que incha como uma vela, a  minha franja em dias de vento e chuva que mais parece um catavento, tornam evidente aos olhos a presença sensível do ar. No cair da chuva também podemos sentir a presença sensível do ar…, quis eu saber. Nem tive tempo para completar a frase. A resposta dela foi fulminante e doce: pressinto-o triste na cor de mirtilos dos seus olhos, anime-se; deixe a chuva, é água que cai do céu!

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