Um testemunho de toda uma vida

O juramento médico de Amato Lusitano é um testemunho de toda uma vida e o seu padrão ético é (ou devia ser) ainda actual. Ler e pensar este juramento de um médico português, de renome mundial, numa muito boa tradução para a língua portuguesa (o original foi escrito em latim, importa não esquecer), permite abrir os olhos para a realidade social e política que nos rodeia.  Talvez (quem sabe!) valha a pena recordar aqui, a propósito, o conselho sábio de José Saramago (outro português de renome mundial) no "Ensaio sobre a cegueira": "Se podes olhar, vê. Se podes ver, repara".

Juramento médico
"Juro perante Deus imortal e pelos seus dez santíssimos mandamentos, dados no Monte Sinai ao povo hebreu, por intermédio de Moisés, após o cativeiro do Egipto, que na minha clínica nada tive mais a peito do que promover que a fé intacta das coisas chegasse ao conhecimento dos vindouros; e para isso nada fingi, acrescentei ou alterei em minha honra ou que não fosse em benefício dos mortais; não lisonjeei, nem censurei ninguém ou fui indulgente com quem quer que fosse por motivos de amizades particulares; sempre em tudo exigi a verdade; se sou perjuro, caia sobre mim a ira do Senhor e de Rafael, seu ministro, e ninguém mais tenha confiança no exercício da minha arte; quanto a honorários, que se costumam dar aos médicos, também fui sempre parcimonioso no pedir, tendo tratado muita gente com mediana recompensa e muita outra gratuitamente; muitas vezes rejeitei, firmemente, grandes salários, tendo sempre mais em vista que os doentes por minha intervenção recuperassem a saúde, do que tornar-me mais rico pela sua liberalidade ou pelos seus dinheiros; para tratar os doentes jamais curei de saber se eram hebreus, cristãos ou sequazes da lei maometana; não corri atrás das honras e das glórias e com igual cuidado tratei dos pobres e dos nascidos em nobreza; nunca provoquei a doença; nos prognósticos disse sempre o que sentia; não favoreci um farmacêutico mais do que outro, a não ser quando em algum reconhecia, porventura, mais perícia na arte e maior bondade de coração, porque então o preferia aos demais; ao receitar sempre atendi às possibilidades pecuniárias do doente, usando de relativa moderação nos medicamentos prescritos; nunca divulguei o segredo a mim confiado, nunca a ninguém propinei poção venenosa, com minha intervenção nunca foi provocado o aborto; nas minhas consultas e visitas médicas femininas nunca pratiquei a menor torpeza; em suma, jamais fiz coisa de que se envergonhasse um médico preclaro e egrégio. 
Sempre tive diante dos olhos, para os imitar, os exemplos de Hipócrates e de Galeno, os pais da Medicina, não desprezando as obras monumentais de alguns outros excelentes mestres na Arte Médica; fui sempre diligente no estudo e por tal forma que nenhuma ocupação ou circunstância, por mais urgente que fosse, me desviou da leitura dos bons autores; nem o prejuízo dos interesses particulares, nem as viagens por mar, nem as minhas frequentes deambulações por terra, nem por fim o próprio exílio, me abalaram a alma, como convém ao homem sábio; aos discípulos (que até hoje tenho tido em grande número e em lugar dos filhos tenho educado) sempre ensinei muito sinceramente a que se inspirassem no exemplo dos bons; os meus livros de Medicina, nunca os publiquei com outra ambição que não fosse contribuir de qualquer modo para a saúde da humanidade. 
Se o consegui, deixo a resposta ao julgamento dos outros, na certeza de que foi sempre a minha intenção e o maior dos meus desejos. - Feito em Salónica, no ano do Mundo 5.319”. (1559 da nossa Era)

Fonte: D´ESAGUY, Augusto, Oração e Juramento Médico de Moisés Maimonde e Amato Lusitano, Lisboa, 1955

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