Um senhorito satisfeito perito de muito pouca coisa!

Por sua causa, suspirou a minha fada de olhos aninhados nas mãos meninas, passei a noite inteirinha sem dormir; não consigo, por isso, suportar esse seu ressonar de sapo concho preguiçoso, mesmo sabendo que está a sonhar comigo; eu sou o seu ritmo e o seu costume silencioso e trago comigo um sorriso para trocar consigo. Há limites para a tolerância, tenho a certeza que há, invectivei-a algo aborrecido com a sua petulância e já agarrado ao miolo do travesseiro. Não ligando rigorosamente nada à minha incomodidade, continuou dizendo que, por minha causa (outra vez, pensei comigo), ela tinha passado a noite inteira a ler “Os Lusíadas”, com o intuito de explicar o actual suicídio da Europa. Disse ainda que era cidadã do Universo, que se sabia um semi-sono de Deus, que eu tinha nascido em Portugal por escolha sua e que ela estava preocupada com a grave situação social do belíssimo país que ela escolhera para eu nascer. Era só que me faltava, não pude deixar de a interromper, saber que nasci em Portugal por escolha sua. Se assim foi, agradeço-lhe porque gosto muito deste meu país; mas o que é que “Os Lusíadas” têm a ver com tudo isto? - Perguntei-lhe com ar de quem quer adivinhar. “Os Lusíadas”, meu caro lusitano dos montes hermínios, são uma obra aberta e de uma grandeza sem fim que resiste a toda e qualquer manipulação hermenêutica; mas o que é incontestável é a sua natureza de uma grande obra da cultura europeia, respondeu adocicando as palavras como quem ajuda uma ave a subir. Será que ainda não percebeu que Luís de Camões elevou à altura épica uma consciência de destino nacional como narrativa unificadora, num tempo em que a ideia de nação era algo oracular e profético, como se pode constatar no último livro de “O Príncipe” de Maquiavel que eu ajudei a compor? Se é como diz (ela conheceu Maquiavel?!), interrompi-a, então Camões pensa o destino de Portugal como destino europeu e, sendo assim, nos Cantos de “Os Lusíadas” mora o eurocentrismo. Verdade meu adorado pensador furtivo, atalhou de chofre, sim, eu sei. Mas (olhe bem para mim e leia nos meus lábios sem deixar que a minha beleza lhe tolde o pensamento) o lugar da Europa, na épica de Camões, é muito mais subtil porque exalta as qualidades do pluralismo europeu e mostra um inegável desencanto em que a Europa, naquele tempo, se tornara: um labirinto de conflito e de desordem. Creio que percebi, suspirei aliviado da tensão que se apoderara de mim. Percebi, continuei, que uma releitura de “Os Lusíadas” pode servir para iluminar a presente crise europeia e para explicar a situação portuguesa, ou seja: a Europa da “tróika” e do pacto orçamental é hostil à condição essencial de uma cultura que não subsiste sem progresso, sem uma caravela para embarcar e sem um compromisso para cumprir. Ora aí está uma afirmação que eu subscreveria, disse ela com os dedos maneirinhos em jeito de brinquedos navegantes; reli “Os Lusíadas”, asseverou, para lhe dizer que é possível conseguir a energia necessária para resistir às investidas retóricas e práticas dos actuais moralistas da austeridade que são gente tão arrogante quanto ignorante, concorda comigo? Sou levado a concordar, respondi, tal é a força dos seus argumentos; fico também ciente de que é gente desprovida da mais elementar cultura humanista e histórica. Sem me deixar concluir, garantiu-me que foi Ortega Y Gasset (no ensaio “A Rebelião das Massas” de 1929) que melhor traduziu o perfil dessa gente quando desenhou a figura do especialista moderno: um senhorito satisfeito perito de muito pouca coisa!

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