Não se arme em Tarzan que eu não tenho jeito para Jane!
A minha presença aconchegada a si, agorinha mesmo, provoca-lhe
uma sensação de arrepio, afagou-me os
tímpanos em murmúrio de silêncio, a minha deliciosa fada, tudo fazendo, em gestos de obra esculpida, para que eu não
acordasse em sobressalto (a ternura dela brota sem cerimónias, registe-se para memória futura). Nem quero acreditar que tenha decidido acordar-me a
estas horas da manhã para me falar dos meus arrepios, soprei as palavras para o ar como quem se mostra aborrecido. Mas
reconheço, continuei, que é verdade
que a sua presença me deixa a modos que com pele de galinha, num estado de ser onde o pensamento se esgota e a emoção se agiganta. E se quer
que lhe diga, sinto o mesmo quando tenho muito frio, quando apanho um grande
susto, quando fico deslumbrado por uma paisagem, quando me emociono com a arte
incomparável de um soneto de Shakespeare, quando o som do jazz me delicia… Não
diga mais porque a sua narrativa poética me confunde, interrompeu-me. Diga apenas que sente arrepios e que se emociona.
Chega. E porquê? Sabe porquê? É minha convicção, respondi-lhe um pouco a medo, que nós, os seres humanos, temos uma
história inscrita nos nossos corpos e penso que até transportamos inscrições antigas à
espera de serem decifradas. Percebo, gaguejou
com as suas mãos náufragas a quererem falar, mas para quê? Para que, continuei, a epigénese (as estruturas
novas surgem de forma gradual, tenho a certeza) faça o seu trabalho em silêncio e tempo
vagaroso, agindo por auto montagem e não por arquitectura planeada. Belíssima
resposta, meu caro! Acertou porque é dessa forma que o mistério se aproxima do
milagre quando se procura e descobre o elo que falta, sussurrou. Quando se procura e descobre o elo que falta? – Perguntei-lhe, enquanto a observava em jeito de soslaio livre e interessado. Óbvio, meu adorado interrogador de "meia tijela", apreciador de polvo em azeite e desastrado adiador do amor, invectivou-me de olhos bogalhados de pérola e a usar ternura aos molhos. Perceba de
uma vez e daqui para a frente que, na sua vida, o mistério se aproxima do milagre quando eu estou
presente; eu sou o elo que lhe acalma os sentidos para o fazer feliz e para ser feliz. Desperto, alerta e
estimulado de contente, desafiei-a a
tentar uma resposta: a tentar adivinhar
qual a palavra que eu iria gritar, em voz alta, para saber o que o eco me
responderia. Com o seu melhor ar empertigado, elegante e oblongo de tranquilidade, sorriu, ajeitou a franja rebelde e garantiu-me, abanando a cabeça como quem jura, que a ponta âncora de um qualquer fino fio de pensamento no meu cérebro, é sempre o nome dela... E
rematou, menina de olhos calmos, embebedada de alegria dançante e com uma sonora gargalhada de afago a tiracolo: não se arme em Tarzan que eu
não tenho jeito para Jane!
Comentários
Enviar um comentário