Vou ser uma menina a inclinar a tarde!
Tinha eu decidido dormir uma sesta ligeira e já
um soninho me fazia adornar as pálpebras quando, sem se fazer anunciada, a minha
fada preferida me abanou com um punhado de olhos a procurar os meus, dizendo
que, andando a fazer limpezas em casa, se tinha lembrado de mim a propósito
das “Cidades Invisíveis” de Italo Calvino; um romance (realçou) que ela ia lendo de viés para
quebrar a monotonia das limpezas e para afugentar um pensamento afogueado e sem norte que há três dias a apoquenta e não arrefece. Fiquei um pouco intrigado com a blusa dela (fina e transparente) num dia de frio; mas fiz de conta e, com uma voz de quem ainda não tinha perdido o sono, respondi que não era
uma hora adequada para conversar, dado que eu andava com o sono atrasado e com uma actividade inacabada, por
causa da minha maldita teimosia em perceber onde mora a alma: gostava de lhe perguntar se é mesmo verdade
que a ansiedade e a excitação se alimentam de insónias agitadas. Meu caro, invectivou-me, eu vivo com premonições permanentes e
percebi há uns dias, num sonho que lhe hei-de relatar, que precisava da minha ajuda para descobrir a morada da sua alma (quanto me custa,
ouvi-a murmurar, falar com os seus conceitos desajustados no tempo!). Se lhe apetece, ponha o seu ouvido esquerdo na minha boca para ouvir melhor, continuou. Ouvi-a, então, dizer de mansinho que alguns filósofos pensaram que
a alma residia no coração e que alguns cientistas afirmavam que ela residia no
cérebro; que uns e que outros garantiam que a alma era invisível, a modos que uma
cidade invisível organizada. Creio entender o que diz, interrompi-a
com arrepios no corpo (tipo pele de galinha), porque, segundo o pensamento
antigo, se as três faculdades da alma eram (e são) a imaginação, as emoções e a memória, então
a alma mora numa cidade invisível. Não se precipite, tirando conclusões sem
pensar, sussurrou-me com os olhos
bogalhados e cheios de bondade; e não se precipite porque a alma não mora numa cidade invisível, a
alma é uma cidade invisível. O que foi que e como disse? Quer tentar esclarecer-me? – Perguntei e pedi com os trejeitos meigos de uma calhandra assustada. Queria dizer, respondeu ela, que foi quando os filósofos e
os cientistas garantiram que a alma morava no coração ou no cérebro que a alma
se fez carne. Mas também queria dizer que, mesmo assim, não ficou resolvido o mistério da
alma; sabemos hoje que a alma cabe em pouco mais de quilograma e meio de tecido
cerebral. Se assim é, arrisquei dizer e perguntar,
a alma parece continuar a ser um princípio imaterial e imortal que pensa, sente e rege o nosso corpo; e confunde-se com o que hoje denominamos de mente, ou seja, aquilo que nós somos, recordações, emoções e experiências, verdade? Ajeitando a franja
rebelde, pendurou os olhos num risinho alegre e despenteado e, pontuando um silêncio de cristal, pediu-me que a ouvisse de mãos quietas. Garantiu-me
que eu me aproximaria da verdade, se partisse do princípio que mente e
cérebro são dois conceitos inseparáveis. O meu ar apalermado fez com que ela se
risse a bandeiras despregadas e me dissesse que, estranhamente (ou talvez não),
tinha tido esta mesma conversa, em 1643 e em Londres, com Thomas Willis num restaurante
maneirinho em que tinham comido um excelente arroz de cabidela, acompanhado com um púcaro meio cheio de vinho tinto. Mas disse mais. Disse que foi ela que, ao convencer Thomas Willis
que pensamentos e emoções eram tempestades de átomos que ocorriam no cérebro,
abriu o caminho teórico à descoberta dos neurotransmissores, à descoberta da
mente e à descoberta de que os males da alma são sobretudo físicos. Faço-me entender ou precisa que lhe explique em língua gestual? - Questionou-me, sem apelo nem agravo. Quer dizer-me, invectivei-a mesmo assim (ainda que com o meu ouvido esquerdo a abarrotar de carícias e desnorteado com a íntima brancura dos
dentes dela) que foi Thomas Willis que, há mais de três séculos, inaugurou a
era do cérebro, a era neurocêntrica? Veja a injustiça, respondeu-me com um sorriso a florir nos lábios: a ideia foi minha, acabo de lhe contar o que
aconteceu e, para a história e até para si, foi o Thomas que inaugurou a era
neurocêntrica. Já não me chegava ter que fazer limpezas na minha casa, apenas poder ler de viés um romance
de um autor de que gosto muito e ainda tenho que aturar a sua forma pouco rigorosa de
pensar. Sabe o que lhe digo? Vou acabar com as limpezas, vou parar de ler o romance do Italo Calvino, vou desafiar um ramo de estorninhos e...
Vou ser uma
menina a inclinar a tarde!
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