A inteligência alimenta-se da incerteza

Regresso hoje à conversa consigo, meu caro, ainda um pouco combalida e com os pés doridos, disse-me a minha sempre fada, à medida que descalçava, com as mãos maneirinhas sobejadas, uns ténis lindos e bem elegantes e femininos. Para que saiba, continuou dizendo, decidi participar (o que não foi o seu caso, lamento ter de lhe dizer) numa manifestação de pessoas indignadas que não usaram o cansaço; porque sou solidária com aqueles que têm a vida infernizada por uns quantos enfatuados, inúteis, incompetentes e sem pingo de vergonha na cara; uns troikanos bem acolitados que, diga-se de passagem, para mim são uma espécie rara de pessoas-nenhumas. Se entendeu que participar era o seu dever, não fez mais do que devia, respondi, enquanto me tentava concentrar e reconcentrar num estudo sobre o nascimento e sobre o desenvolvimento da inteligência humana. Não sendo capaz de me concentrar nesse estudo, decidi perguntar-lhe se ela tinha a certeza de que aquele tipo de manifestações servem mesmo para alterar algumas coisas quando, à partida, não se reconhece competência àqueles que têm o poder para alterar essas coisas erradas; e rematei a minha pergunta com um “parece um paradoxo, não acha?”. Admito e compreendo, retorquiu de voz inclinada, que assim se possa pensar mas é um engano. E sabe porque é que é um engano? Claro que não sabe; mas eu explico porque gosto de si. Pense comigo e atente no que eu digo porque as palavras têm significados cicatrizados. A incerteza ou um certo grau de incerteza motiva sempre mais do que a segurança de que vamos alcançar um objectivo. É ou não verdade que se sabemos que vamos atingir um determinando objectivo, ficamos menos motivados? Claro que é evidente e claro, respondi de imediato, com um ar complicado mas tentando ser simples. E continuei dizendo que tinha acabado de ler, a propósito do nascimento e do desenvolvimento da inteligência humana, que se não houvesse incerteza, tudo estaria previamente decidido; nada excitaria suficientemente a curiosidade e nada anteciparia a possibilidade de alguns factos acontecerem. Estaria perfeito o que acaba de afirmar, interrompeu-me, de olhos bogalhados, felinos e a meia pestana, se tivesse acrescentado que a inteligência humana tenta poder tomar decisões em relação às quais não tem certezas; e, se também tivesse dito, que as emoções são os motores da nossa conduta quotidiana e que são elas que nos abrem expectativas (se lhes dermos rédea solta e linhas de horizonte, claro) de que algo agradável nos pode acontecer. Sorrindo doce, desarmou-me: pela sua cara de borboleta futuramente surda e gaga, já percebi que sabe que eu sei o que está a pensar. Disse, então, que sabia (senti naquele instante uma mão dela a tentar residência no meu rosto) que eu estava a pensar que sempre que ela resiste ao que eu digo, discorda do que eu faço e duvida do que eu prometo, aumenta o meu grau de incerteza quanto à sua permanente presença junto de mim. Mas disse ainda mais. Com um olhar feito repouso e grávido de simplicidade, disse que é este meu grau de incerteza que me obriga a tentar ser cada vez mais inteligente, em busca da felicidade e do prazer; e, ainda acrescentou que se não há emoção, não há acção.
Pura verdade!

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