A ideia de Justiça
“Anne, Bob e Carla são três crianças a
discutir por causa de uma flauta. Anne diz que a flauta deve ser dela, porque
ela é a única dos três que sabe tocar flauta. Bob argumenta que não, que a
flauta tem que ser dele, porque ele é muito pobre e não tem mais nenhum
brinquedo. Carla, por seu turno, diz que ambos estão errados porque, na
verdade, quem fez a flauta foi ela (perdeu imenso tempo com isso) e, portanto,
não tem dúvidas que a flauta é dela.
Dando este exemplo nas primeiras páginas
do livro, Amartya Sen faz-nos pressentir o tom de toda a obra: o confronto
amigável de muitas opções, ilustrado com muitos exemplos, num espírito de
abertura e tolerância que fala muito das suas raízes indianas.
No exemplo acima, que chega ao final do
livro sem solução, Sen exemplifica com muita simplicidade três formas clássicas
de ver a justiça: um igualitário, cuja principal preocupação é diminuir ou
fazer desaparecer as diferenças entre ricos e pobres, diria que a flauta teria
que ser do Bob. Um libertário por-se-ia imediatamente ao lado da Carla: ela tem
direito total ao fruto do seu trabalho. Um utilitarista tem algum trabalho a
escolher: por um lado, põe-se ao lado da Ana, uma vez que ela é a que pode
tirar mais prazer do objecto, pois é a única que sabe tocar flauta. Por outro
lado, inclinar-se-ia para o Bob, porque o seu ganho incremental de felicidade
seria grande ficando com a flauta, uma vez que ele não tem mais nenhum
brinquedo.
O que Sen quer mostrar com
o exemplo é que as perspectivas da justiça são inúmeras, tantas quantas as
pessoas que a interpretam, dentro das suas circunstâncias.
Neste quadro, Amartya Sen
também faz a distinção entre dois conceitos indianos de justiça que acompanham
toda a obra: a diferença entre niti e nyaya. Niti significa correcção ao nível
das organizações e dos comportamentos. Nyaya significa justiça realizada,
cumprida na vida das pessoas.
Sen tem em atenção estas
duas vertentes da justiça mas esclarece que está muito mais interessado na
nyaya do que na niti.
Nesta linha, o autor
contrapõe duas correntes saídas do iluminismo: uma a que denomina
“institucionalismo transcendental”, preocupada em perceber o que é a justiça
perfeita e em arranjar as instituições perfeitas. Identifica neste painel
autores como Hobbes, Locke, Rousseau, Kant e Rawls.
À segunda corrente, Sen
chama de “comparativa, focada em realizações”, por se basear em juízos
comparativos da realidade e estar mais preocupada em remover injustiças do que
em perceber o que é a justiça perfeita. Neste painel, Sen enquadra Adam Smith,
Condorcet, Bentham, Marx e Stuart Mill. E ele próprio.”
(…)
DINA MATOS FERREIRA
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