O homem de Lascaux
Senti que alguém, com
um afago de seda de andorinha roçando o meu rosto, me acordava madrugada muito cedo. Passavam exactamente vinte
e quatro minutos da uma hora manhã de um dia que a chuva trazia consigo. Abri os olhos e eis que,
debruçada sobre o meu ouvido esquerdo, a minha desaparecida e elegante fada me sussurrava:
acabo de confirmar que o meu excelente amigo Michel
Jouvet tinha razão quando me dizia que existe uma fonte dos sonhos no cérebro.
Não acredito, invectivei-a, que me
tenha acordado sem um motivo muito forte; sei que se preocupa com as
minhas insónias inquietas e quase diárias (recorda-se de me ter dito que é no sono que vem à tona a transparência?). Claro que é um motivo muito forte que me leva a estar aqui consigo, gargalhou com os olhos grandes de criança cheios de água fresca e afastando a noite ao de leve. Depois de lhe contar a minha conversa com o Michel Jouvet (se não sabe quem é, tem bom remédio, não seja calão e pesquise), verá que tenho razão em interromper o seu sono. Quando jantámos, no dia do meu aniversário (que prenda linda que ele me ofereceu!), numa sala pequenina
de num restaurante maneirinho, o Michel garantiu, com ar convencido, que tinha descoberto o significado e que sabia
interpretar uma das mais antigas representações humanas conhecidas: uma representação de um homem na gruta de
Lascaux. Escolheu para esta hora uma conversa destas? Recuso-me a acreditar! – Exclamei,
interrompendo-a e tentando voltar a dormir enquanto o tempo pousava devagar nas pálpebras e eu sentia a fragrância do ar. Tenha calma! - Pediu-me. Olhe com atenção
para esta imagem que lhe mostro e diga-me o que vê, enquanto eu deixo que a minha mão pequenina se vá perdendo cega. Já percebi, continuou, que tenho que ser eu a
explicar a imagem. Se olhar para ela (acorde e abra os olhos porque eu gosto dos seus olhos azuis)
como uma música inacabada, verá um homem, com cabeça de pássaro, de braços estendidos e com
uma erecção. De um lado do corpo do homem, verá um pássaro que é uma réplica da cabeça do
homem, pousado num mastro; do outro lado do corpo do homem, está um bisonte, lindo, enorme e
ferido. Já vi todos esses pormenores, disse eu com ar
enfadado, perguntando-lhe se, na sua opinião, a descrição que acabara de fazer, era suficiente
para me acordar quando ainda eu estava no primeiro sono. Não seja mal-educado
nem se arme em cavaleiro de coração impaciente e adorador do avesso da vida. Oiça com atenção a interpretação que o Michel me confidenciou. Afirmava ele e
eu não acreditava (neste momento acredito porque vejo e sinto), que se podia supor que o desenho traduzia o desejo de matar
um bisonte, que se podia supor que o pássaro representaria o espírito do homem
que deixa o corpo para viajar para o passado ou para o futuro e que o
aparecimento periódico (a cada noventa minutos) de uma erecção durante o sono, coincide com um sonho que nasce numa fonte no cérebro. Alto aí, retorqui
embaraçado e ruborizado, tem mesmo a certeza que este diálogo consigo existe? Percebi, desabafei comigo, trata-se de um sonho. Eu não tenho cabeça de pássaro, já não existem bisontes, mas está explicado o que me aconteceu e porque me aconteceu. Faltavam seis minutos para a meia noite, quando ontem adormeci e, portanto, já passaram noventa minutos de sono e ... Meu caro e adorado descendente aparentado do homem de Lascaux, interrompeu-me, para surpresa minha e sem me deixar concluir a frase, a minha fada que, com um sorriso a florir-lhe nos lábios e trauteando as palavras, uma a uma, sentenciou deliciada: eu sinto o meu coração a bater ao ritmo das suas emoções (claro que foi emoções que eu disse, não se baralhe); e, quando e sempre que sonha comigo, eu estou por perto e concentro os meus olhos que sempre se afogam no mais precário lugar do seu corpo; e, para o que der e vier, trago sempre comigo e à mão de semear, um desfranjado e pausado silêncio... E (sei que gosta!) o meu maroto e inconfundível piscar de olhos, à proa do meu melhor, divertido, descontraído e desconcertado sorriso.
Ela diz que eu sou um descendente aparentado do homem de Lascaux? Que raiva! Que guicha! Vou pôr o relógio a despertar e, na hora certa, tiro a prova dos noventa. Sempre quero ver se ela aparece de novo!- Matutei com os meus botões.
Ela diz que eu sou um descendente aparentado do homem de Lascaux? Que raiva! Que guicha! Vou pôr o relógio a despertar e, na hora certa, tiro a prova dos noventa. Sempre quero ver se ela aparece de novo!- Matutei com os meus botões.
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