Os cegos também podem ver


Hoje, ouvi dizer a minha fada enquanto espiava, sorrateiramente, o livro que eu tinha na minha mão esquerda, deliciei-me com duas cantigas medievais, a modos que como um curto parênteses de ser. Uma cantiga foi o sopro de alegria matinal de que eu andava à procura, há um tempo já; a outra que relata milagres em que cegos recuperavam a visão, deixou-me apreensiva. Desconto, porque gosto de si, interrompi-a, o facto de, sem eu dar por isso, já me ter surripiado o livro que eu estava a ler e pergunto-lhe porque é que ficou apreensiva. Não acredita em milagres? Acredito em milagres, claro que acredito em milagres (eu até sou um milagre na sua vida), asseverou. Mas fiquei apreensiva porque aquela segunda cantiga, me fez lembrar uma conversa íntima (e já agora muito bem humorada) que tive, nos anos sessenta do século passado, com Paul Bach-y-Rita e em que matutámos (eu mais que ele) em várias ideias que poderiam devolver a visão aos cegos. Eu conto-lhe o essencial e sem os pormenores íntimos. O pai do Paul tinha acabado de recuperar, de forma inacreditável, de um acidente vascular cerebral e o Paul ficou fascinado com o potencial da reconfiguração dinâmica do cérebro do pai dele. Estou já a imaginar, atrevi-me a dizer, que a ideia que primeiro surgiu na vossa conversa, foi explorar a possibilidade de o cérebro poder substituir um sentido por outro; fico é muito curioso porque não descortino a forma como explorar e pôr em prática essa possibilidade. Até que, sussurrou-me rindo-se, para um amador de ciência atrevido, não se saiu mal com o que acaba de dizer, já que me permite destacar que a genialidade do método científico é que não aceita uma solução permanente, ou seja, o cepticismo é o seu solvente porque todas as teorias são imperfeitas. A verdade é que, insistiu, o Paul imaginou e ajudou a construir uma câmara vídeo que se prende à testa dos cegos e a conversão da informação vídeo entra numa série de vibradores colocados nas costas. Já percebi, exclamou enfastiada, que não está a perceber nada. Eu explico-lhe devagar (que sina a minha!), exemplificando. Imagine que está com os seus olhos azuis (eu gosto muito dos seus olhos azuis) vendados; com uma daquelas câmaras de vídeo na sua testa começa a andar numa sala (que não conhecia previamente) e onde se encontram vários e variados tipos de móveis. O que é que aconteceria? Que lhe parece? Eu não veria nada e tropeçaria, qual velho trôpego, em tudo o que fosse obstáculo, respondi-lhe de imediato. Ainda eu não tinha acabado de falar e já ela, furibunda, me asseverava que nem queria imaginar que eu, mesmo que numa simples resposta a uma pergunta, me pudesse sentir já um velho e muito menos um velho trôpego; e, encostando o seu dedo indicador ao meu nariz, garantiu-me que o passado é ao mesmo tempo perpétuo e efémero. Para espanto meu, resolveu segredar-me que tinha uma especial predilecção pelos mais velhos (mas só pelos mais velhos acima dos oitenta anos) que sejam sábios da vida e que se indignem activamente com as injustiças e as tolices de alguns mais novos e incultos; e, disse ainda, que sabia que Deus é brincalhão e que a esses, e só a esses mais velhos, lhes dará sempre, sem mão beijada, mais quinze anos de vida. Eu, fazendo de conta que não tinha ouvido nada, continuei dizendo que se tropeçasse numa mesa, pensaria que o que me estava a acontecer, nada tinha a ver com o sentido da visão. Já me passou a irritação, ouvi-a dizer ainda um pouco afogueada de simbolismo. Oiça com atenção e sem se perder nos meus olhos como é seu costume, interpelou-me. O seu input táctil (input táctil é igual a tropeção; e desfaça essa ruga na testa ou fico mesmo convencida que alguns dos seus neurónios são uma espécie de apócrifos biológicos) com uma mesa, passados uns dias de experiência continuada, tornar-se-ia mais que um puzzle cognitivo que exigia uma tradução; seria uma sensação directa. Deixe-me sorrir, interrompi-a deliciado e com um afoitado rubor. Com que então seriam os sinais nervosos provenientes das minhas costas que representavam a visão? É isso que me quer dizer? Se sim, porquê? Meu caro, quase que gritou, o seu sorriso matreiro e a sua desfaçatez, deixam-me com a franja à banda. Será que não percebe que o seu cérebro (agora já quase tenho a certeza que o seu cérebro tem uns gramas abaixo da média e até admito que possa ter qualquer anomalia no circuito de Papez) está alojado numa escuridão da sua abóbada craniana e que, por isso, não vê nada e só conhece os pequenos sinais? Eu já sei, continuou, o que me vai perguntar (eu percebo sempre a curva total do seu pensamento) com esse seu ar espantado; mas não pergunte, não vale a pena. É óbvio, garantiu convictamente, que percepcionamos o mundo com cambiantes de brilho e cores porque enquanto o cérebro está às escuras, a mente constrói a luz. Percebeu agora porque é que os cegos, quando põem os óculos de substituição visual-táctil, se tropeçam numa mesa, enviam impulsos para o cérebro e este é capaz de construir uma percepção directa a que vulgarmente se chama de visão? Sé é como diz, arrisquei afirmar, então só é cego quem não quer ver. Óbvio, meu caro trôpego mental, ora aí está uma afirmação que se aplica a si que nem uma luva, garantiu. Como é um bizarro cego mental hesitante, porque é que não experimenta tropeçar em mim e ver algo de muito belo? Sabe que quando vemos algo de muito belo o desejamos logo? Sabe que a beleza, o desejo e o amor implicam uma actividade neurológica na mesma parte do cérebro? Mas o cérebro, perguntei-lhe, não é um órgão criativo que não se contenta apenas com a criatividade sensorial e que também exige a inteligência, a motivação, a perspicácia, a meiguice das emoções, o riso fácil e a adivinhação? Tudo isso (e mais) eu tenho em dobrado e em multiplicado. Deixe-se de rodeios e tropece em mim. Eu quero, desejo e espero ansiosamente que esse seu tropeção aconteça. Porque não só o estreito abraço da vida inacabada me atrai para si quanto eu deixo, sempre e todos os dias, que a vida real me assalte com todos os seus riscos e os seus desafios a tiracolo. Eu sei, de um saber de experiência feito, que são eles (os riscos e os desafios) que fazem a vida viva....Sorriu e disse!

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