As pessoas não nascem iguais
Era Verão nos meus sonhos soltos (e sem eu ter ideia de quanta noite já ia dormida) quando, sem se fazer
anunciar, a minha fada preferida me acordou, sussurrando de mansinho: ontem, antes de adormecer, lembrei-me, se ainda tem a tal
parede onde colava as fotografias (ou
seriam também outras imagens?) mais importantes da sua vida, de que me chegou a falar algumas vezes. Claro que tenho essa parede e sabe muito bem
que sim, respondi. E, tendo eu percebido,
de imediato, que ela se referia a uma linda parede centenária da casa da minha avó,
não quis deixar de lhe reafirmar que aquela parede só fazia sentido porque
tinha fotografias e imagens que para mim eram importantes e de que só eu conhecia o aroma e o significado. Meu caro, interrompeu-me, esse é o meu problema e a razão de ser da minha preocupação. Dado
que todas as pessoas são todas diferentes porque não nascem iguais, que espécie
de leitura iconográfica, interrogo-me, será feita daqui a muitos anos, se não escrever (tintin por tintin e datando tudo o que escreve)
o valor significativo que cada uma dessas fotografias e dessas imagens tem para si? E, claro, com todo o realce para mim que
sou tudo na sua vida e que também sou sempre uma espécie rara de folha nova a mudar de cor; atente que, sempre que penso em si, o meu coração é um alentejo de orvalho em tom carmim, não esqueça. Deixe agora de lado (um dia falaremos com
mais calma e com mais tempo) a questão relacionada com uma futura leitura iconográfica e até (quem sabe?) com uma futura interpretação iconológica daquela parede da casa da minha avó, pedi-lhe, e diga-me por favor, claramente e sem sofismas, se eu acabei de a ouvir afirmar
que as pessoas são diferentes porque não nascem iguais. Claro que sim; as pessoas são diferentes porque não
nascem iguais, murmurou à medida
que me olhava com os olhos grandes de água fresca e ajeitava a franja de levezinho como quem passava a habitar o meu olhar nu. Seja qual
for, acrescentou, a medida em que avaliamos os seres humanos, descobrimos sempre uma enorme
diversidade: na empatia divertida, na
inteligência acutilante, na agressividade decidida, na entrega de um sorriso cúmplice, no guardar de um segredo, no talento inato para
escolher e mudar de roupa ou para jogar xadrez. Ou me engano muito, invectivei-a, ou os critérios que utiliza para descobrir a
diversidade nos seres humanos, são apenas atributos seus (uma espécie de diamantes não lapidados e puros no pulsar) que conheço bem e que, por vezes, até fazem tremer as silabas nas palavras que escrevo;
apenas tenho dúvidas quanto ao seu talento inato para jogar xadrez. Mas concordo
consigo, continuei, dizendo que acreditava que, muitas vezes, se pensa a diversidade nos seres humanos como um tema que
seria melhor esconder debaixo do tapete quando, de facto, a diversidade é o
motor da evolução da vida. Que supinado topete o seu!- Interrompeu-me
sem cerimónia. Está admirado com a minha exclamação? Eu disse topete e não tapete, sim. Topete, meu adorado
peão de xadrez de trazer por casa, é uma palavra portuguesa que também pode ter o
significado de descaramento ou de audácia quando alguém fala do que não sabe. Com que então tem dúvidas quanto ao meu
talento inato (eu nasci rainha, meu caro!) para jogar xadrez? Vou fazer de
conta que não ouvi o que disse e vou explicar-lhe a minha afirmação com outras
palavras, ou seja, as pessoas não enfrentam o mundo com as mesmas capacidades
(ponha, por exemplo, os olhos em mim e em si; eu sou decidida e sei muito bem o que quero e até tenho noção dos prazos, o que não é o seu caso). As pessoas não enfrentam o mundo com as mesmas capacidades porque os seus genes e as suas
histórias pessoais lhes moldam o cérebro, conduzindo a resultados muito
diferentes. Mas, disse-lhe
afrontando-a, essa diversidade também pode ser uma fonte de problemas, por
exemplo, para o sistema de justiça que se constrói na premissa de que todos os
seres humanos são iguais perante a lei. Ou então, a não ser assim, a ideia da igualdade
humana traduzida no facto de todas as pessoas serem capazes de tomar decisões,
controlar os impulsos e compreender as consequências (uma ideia que fez caminho ao
longo de séculos) não é verdadeira. A igualdade humana é, indiscutivelmente, uma ideia admirável e muito interessante, afirmou, mas não é verdadeira.
Já percebi e estou a sentir, continuou lançando sorrisos ao monótono sibilar do vento matinal, que
tem o seu cérebro a fervilhar e que se vai debater com a insurreição da carne até o silêncio se calar; descanse que não lhe faz mal (a garantia do que digo, é-lhe dada pela inacabada música dos meus dedos cegos). Quero desejar-lhe uma boa noite, calminha, e que durma bem desatando o nó cego do frio.Vou ter de ser fada outra vez, com pensamentos leves,
daqueles que voem até junto de si arrastando a manhã pelo telhado onde os pássaros de demoram; mas porque é que não vejo o seu copo de vidro transparente, com água,
açúcar e canela ao lado, na sua mesa de cabeceira?
Xeque-mate! - Pensei, sem saber onde eu tinha esquecido a minha mão direita.
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